O Sr. Apolinário
Um conto da vida, tão duro quanto ela é, baseado em fato real
O Sr. Apolinário entrou no consultório vacilante, hesitante, com medo de alguma coisa. Cabisbaixo, não se assentou enquanto não lhe pedi, indicando-lhe a cadeira em frente. É a terceira vez que o tenho à minha frente, mirando seus olhos miúdos e tristes. As duas primeiras consultas se consumiram no meu esforço de interpretar devidamente o seu estranho vernáculo.
- “O causo é o seguinte, dotiô, eu tava sentindo bom quando me atacou uma quentura no juízo, e isparrama um quenturão no corpio, uma entoche direto, uma diô nos carocho do oio que passa pro cangote e fica uma dorada geral. Tem um intuio no corpo e uma salera por dentro do peitio” – dizia ele com voz entrecortada, em seu típico dialeto regional, salpicado de sofrimentos que deixava entrever em seus olhos encovados.
Traz estatura mediana, muito magro, para não dizer, esquelético. Tez pardacenta, castigada por anos de muito sol. Face triangular, muito enrugado, com queixo muito fino. Maçãs do rosto salientadas pela magreza, olhos pequenos, fundos, muito avermelhados, parecendo transportar amarguras infindas. Nariz afilado, de dorso reto, boca estreita e ressequida. Lábios profundamente retraídos e ocultos, denotando a completa ausência da arcada dentária. Barba crespa, mesclada de branco, cabelos muito ralos, escondidos por um chapéu de abas pendentes e frouxas, cuja cor não se pode precisar. Tem as mãos trêmulas, hesitantes, sujas, muito sujas. Mas como limpar os maus-tratos do trabalho rude de muitos anos? Traja um paletó escuro, ensebado, com um bolso pendente, preso por uma só banda, apesar do sufocante calor. Calça curta, arregaçada à altura dos joelhos. Pés desnudos. Mas são mesmo pés, aquele par de estruturas alongadas, continuando as pernas, onde não se precisa os limites das unhas dos dedos, mas apenas um couro grosso, seco, cor de terra, cortado por profundas trincas? Certamente, em momento algum de sua vida estivera calçado... Pedi-lhe para retirar o paletó, ao início do exame físico, notando que abaixo deste, o corpo estava nu. Uma frágil vara, à custa de bengala, ajuda sua caminhada vacilante. Cruza no peito um samburá encardido, murcho, certamente vazio. Olha-me demoradamente como se estivesse diante de outra espécie de ser, e apenas responde minhas perguntas, um tanto seco, lacônico, impassível, enrijecido talvez pelas duras lições da vida. Quantos sofrimentos não trará escondido em cada frase curta que me dirige? A simplicidade e a humildade que deixa transparecer tocam-me fundo no coração. Quantas histórias não contará tamanha amargura? Entre raciocínios médicos à procura de diagnósticos, perdia-me buscando as sutilezas de sua alma.
Depois ele se habituou comigo e fez menos sorrateiro, mais amigo, menos tímido e respondia-me com desabafos. Abriu enfim sua alma, carcomida pela vida, e contou-me sua história, entrecortada de bafejos sórdidos, lamentos tristes, entretecida, no entanto, de respingos de conformismo e confiança em Deus.
- “Eu tenho mais de 100 anos - na verdade eu lhe daria entre 40-50 anos, pelos seus cabelos ainda pretos, mesclados de muitos poucos cãs, apesar de aparentar mais de 70, pelo restante de sua aparência - “Sou nascido aqui mesmo. Nasci por detrás do cemitério, onde hoje é a casa do Sô Rosalino Mendonça. Dispois eu fui pra roça. Sempi vivi na roça, na beira do rio...
O Sr. Apolinário viveu toda sua vida na “Boca do rio”, uma pequena estância situada na margem do rio São Francisco, próximo à cidade de mesmo nome, no norte de Minas Gerais. Ali somente se chega por barco, pois sua morada fica do outro lado do rio. O dono da terra? Nunca ninguém soube quem era e nunca ninguém apareceu para lhe reclamar por ela. O Sr. Apolinário é chamado de posseiro, habitante de “terra de ausente”, não possuindo sobre a mesma, legalidade de posse. É terra de ninguém, sem registro, sem quem responda por ela. E dela fazia o milho, o feijão, a fava e a mandioca para o sustento de sua vida e de sua família. O rio lhe dava de graça os peixes mais saborosos, o dourado, a piranha, o surubi. E nela crescia o seu gado minguado, esmorecido, mas zebu da melhor qualidade, que na hora do arrocho rendia um bom trocado. Ali também cultivava seus quatorze filhos, sempre famintos, barrigudos, doentes, mas como Deus sempre quis. Até o dia que vieram as cheias.
- “Eu sou afligelado da enchente, dotiô. O rio...”
Sim, o rio, que sempre fora maneiro, fiel, honrado e de palavra, um dia deixou de ser o amigo de sempre. Veio sorrateiro, rastejando de modo traiçoeiro e lentamente foi penetrando nas frestas, insidioso, até chegar por sob a porta. Foi tomando corpo, engolindo com sede, tudo que encontrava. Bebeu todo o pasto e dispersou o gado. Comeu toda a roça, forçou até a porteira e correu pelo curral. Sorveu a cisterna, o paiol e puxando o chiqueiro, o levou com os porcos e tudo. No outro dia armou cilada atrás do barraco e atacou o feijão, devorou o milho, a fava e até a mandioca por sob a terra. Vergou o canavial, babou no pé da mata e lambeu o morro. Da choça só restou um varal e da roça só ficou de pé, vitoriosa, a laranjeira, logo ela que nunca foi de dar laranja da boa mesmo. O jeito foi vir empurrado para cidade, arrastando seus filhos, que agora contavam dez, pois dois morreram e dois foram ganhar a vida em Belo Horizonte e nunca mais deram notícia.
- “Coisa dos homi de dinhero, né dotiô”...
Sim, as enchentes, que antes existiam de forma muito maneira, tornaram-se desastrosas após a construção da barreira de Sobradinho. E ficou morando na cidade, debaixo de um pedaço de lona. Mas tudo passa. A revolta do rio passa, a gente esquece a mágoa, faz de novo as pazes, ele se recolhe catando suas águas, arrependido, abatido e vexado, cansado de tanto esforço. Deixa para trás a lama, o lodo, o cheiro pútrido, a terra nua, mas ele ainda é o amigo de sempre, dá seus peixes, água a lavoura e sustenta o barco no caminho de casa. A gente ajeita as coisas, o sol ajuda, a flor desponta assustada, mas volta. A morada de adobe não é difícil de por de pé de novo, porque o rio dá também o barro. A mata volta a suspirar aliviada e a bicharada reassume a luta para saciar a fome de cada dia. Depois é só sacudir a poeira da terra, por de pé a cana, desengasgar a cisterna, recolher o gado disperso e a vidinha volta ao normal... até o próximo ano, quem sabe...
O Sr. Apolinário, porém, é posseiro e sua terra legalmente não lhe pertence. Seus pais também moravam nela, mas é “terra de ausente”. Nunca pôde registra-la por usucapião porque nunca conseguiu cercá-la, como exige o INCRA. O preço do arame sobe todo dia e o gado corre longe. Se cercar só o pedaço que o dinheiro dá, o gado não sobrevive, pois o pasto é pobre. E mesmo se conseguisse o cerco da terra, não conseguiria pagar a taxa de registro exigida pelo INCRA. Além do mais, ficaria registrado como empregador, desde que possui terras e não haveria meio de pagar o imposto cobrado pelo Funrural, exorbitante. Melhor é viver como peão ou posseiro, “que num carece de pagar imposto não sinhô”. Assim o jeito é viver quieto na roça. Vez ou outra é preciso brigar com os grileiros, derrubar suas cercas, mostrar os dentes. Os grileiros são aproveitadores, homens de dinheiro, ambiciosos, vivem dentro de escritórios de terras ou nas prefeituras e conhecem de antemão as “terras de ausentes” que serão valorizadas pelas companhias de reflorestamento. Cercam as mesmas, as registram em seus nomes, pagam os impostos, passando assim a possui-las legalmente. E com ajuda de jagunços, e até mesmo da polícia, facilmente expulsam os injustiçados, indefesos e humilhados posseiros.
Enquanto o Sr. Apolinário aguardava a ira do rio se acalmar, o grileiro Sr. Floriano, cercou suas terras e a registrou em seu nome. Pertencem a ele agora, por lei. Não gastou polícia, nem jagunço, pois o rio ajudou o oportunista. O Sr. Apolinário não pode voltar, sua pequena roça não mais lhe pertence. Revoltar-se? Como? Fazer justiça? Quem poderia lhe defender? O jeito é consolar-se e confiar a Deus suas mazelas e pesares.
Ele permanece desde então sob a lona, num recanto da cidade. Sem rumos, sem guia. Ele, sua mulher e seus famélicos filhos. À noite, no entanto permanecem ao relento, expostos às chuvas, ao frio, que por sorte não é tanto. O dono da lona necessita dela à noite, permitindo-lhes usá-la somente durante o dia. Comida? Nem sempre há. Ganha-se um pouco da caridade alheia. A prefeitura manda alguma coisa, que nem sempre dá para todos. Os filhos procuram emprego, alguns pedem esmolas, outros estão doentes. A mulher não está passando nada bem. E ele mal se agüenta de pé. Gostaria mesmo de voltar para roça, ela dá comida, agasalha, acolhe com carinho, protege. Mas já não há roça, não há terra, já não tem para onde ir.
O Sr. Apolinário está em tratamento. Sua maior necessidade é o alimento, a proteção de uma morada, um pedaço de terra... Não precisava nem ser na beira do rio. Mas estes, não tenho como lhe oferecer. “Caridosamente” lhe damos os remédios, que de muito pouco servirão. Ele não conhece as letras e não sei como fazê-lo compreender como deve tomar a medicação corretamente. Ele a usa como e quando bem entende, pois em relógio não sabe ler as horas... Mais ainda, nem relógio possui. Também o que resolveria o seu correto uso, se o que precisa não é apenas remédio.
Sr. Apolinário está muito doente... O Sr. Apolinário está tuberculoso...
Gilson Freire
São Francisco, Maio de 1980
Nota - Durante o último ano da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, os estudantes passam pelo Internato Rural, regime de trabalho e estudos, onde ficam três meses em contato direto com populações carentes do norte do Estado. O Sr. Apolinário foi desses pacientes, atendido durante esse rico período de experiências no campo da Medicina e do Espírito.