Pequeno Comentário sobre a Eucaristia e a Transubstanciação
“Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, abençoando-o, o partiu e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. E tomando um cálice, rendeu graças e deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; pois isto é o meu sangue, o sangue do pacto, o qual é derramado por muitos para remissão dos pecados. Mas digo-vos que desde agora não mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que convosco o beba novo, no reino de meu Pai” - Mateus 26: 27-29.
Ao estudarmos o desenvolvimento do pensamento religioso do homem, vemos que a noção que o primitivo tinha dos deuses era bastante antropomórfica, a ponto de considerá-los possuídos dos mesmos sentimentos humanos que os moviam. Desta forma, quando os homens se transviavam das normas ético-religiosas de seus tempos, estabelecido como permitido, os deuses se iravam contra eles, ofendidos e melindrados, comportando-se segundo um padrão totalmente humano. Os homens primitivos daquelas épocas, possuídos de uma parca moral incipiente, não conseguiam manter-se dentro dos padrões de conduta, preconizados pelas religiões da época e daí desenvolviam subterfúgios para aplacar a ira de seus deuses pretensamente ofendidos. A prática de rituais que os agradassem e de alguma forma os ludibriassem, modificando a idéia que poderiam ter formado a respeito dos pecadores, naturalmente obedecia ao mesmo padrão de comportamento que os próprios homens adotavam diante de seus devedores. Agradá-los e adulá-los poderia sem dúvida diminuir, ou mesmo fazê-los esquecerem as suas faltas, minorando as suas penas. Nestes rituais, para que os deuses se acalmassem, convinha então fazer-lhes ofertas do que de melhor tinham. Parte de suas coletas na agricultura ou mesmo os frutos das pilhagens das guerras eram ofertados aos deuses, dentro do psicologismo infantil da época. Quando, no entanto, a falta fosse mais grave, envolvendo as mais brutais formas de agressões humanas, a simples oferta de bens poderia não ser o bastante, pois aqueles pretensos deuses poderiam exigir mais, queriam ver sangue em seus castigos. Então, precisavam ser enganados de uma forma ainda mais convincente, oferecendo-lhes a vida de alguém que prezassem, normalmente jovens virgens e inocentes, que eram então mortas para aplacar as suas possíveis iras. E quanto mais inocente o ser sacrificado, maior seria a recompensa do deus ofendido, pensavam. Surgiram assim os rituais macabros objetivando nitidamente um engodo, pois desta forma pensavam estar ludibriando os seus deuses. Com a evolução, o homem aprimorando paulatinamente seus valores morais, desenvolveu formas um pouco mais amenas de sacrifícios, menos danosos para a sociedade, mas que ainda lhes lembravam a necessidade de se derramar sangue. As virgens foram assim substituídas por animais pacatos, que suscitavam a mesma imagem de inocência. Deste modo, as ovelhas e as pombas, símbolos de inocência e paz, passaram a ser sacrificadas para aplacar as consciências culpadas dos homens, diante de seus deuses, ofendidos pelas práticas da maldade contumaz. E assim, pelo menos momentaneamente, estariam livres para continuar incorrendo nos mesmos atos, acreditando-se livres do castigo divino.
Esse psicologismo pueril foi praticado em todas as religiões, por todos os povos, em todas as épocas, mostrando que se tratava de subterfúgio comum da incipiente consciência humana em desenvolvimento. Acompanhando a formação do pensamento religioso, foi incorporado ao Monoteísmo judaico e ao Cristianismo nascente. Ainda hoje podemos vê-lo nas religiões mais primitivas do planeta, como os cultos africanos, que persistem preconizando as ofertas de sangue de animais, ou mesmo, em ritos macabros e cruéis, do sangue de crianças. Na idade média se vendiam indulgências, motivadas pelo mesmo psicologismo religioso infantil, onde o homem se ludibria, pensando estar ludibriando com seu pretenso sacrifício a enganosa imagem que faziam de Deus, comprando a sua salvação e redimindo seus pecados mediante a abdicação do que mais prezavam, os seus bens materiais.
Na época de Cristo, vigorava essa mesma psicologia religiosa e Ele sabia disto. Não convinha ainda mudá-la, bruscamente, pois o homem ainda não estava amadurecido para a evolução do pensamento religioso, o que demandaria a ação lenta da evolução através do tempo. Talvez o Mestre tenha se referido ao seu sacrifício em vir até nós, para nos ensinar, com o seu exemplo, o caminho da evolução da alma. Não sabemos se Ele realmente proferiu as exatas palavras da Eucaristia, mas sabemos sim, que a imagem que o Mestre suscitou nos homens de então foi exatamente a de um inocente que se deixa sacrificar para, aplacando a ira de um deus antropomórfico, proporcionar a salvação daqueles que pecaram. Por isso, foi chamado de “cordeiro de Deus” que morreu em nosso lugar para acalmar a ira de um deus ofendido pelos nossos pecados. Uma imagem em nítida associação com a noção da religiosidade vigente na época e a necessidade de sacrifícios. O sangue de Cristo teria sido derramado com essa finalidade. Hoje sabemos que tal interpretação é um absurdo diante de um Deus que está muito além deste pueril psicologismo humano, a ponto de aceitar a morte de um inocente para pagar os pecados que são nossos. Estes são intransferíveis diante de uma Lei perfeita, que vai muito além de nossa pobre imaginação. Cristo não se deixaria imolar em nosso lugar, para nos eximir do esforço coletivo e pessoal de evolução, para nos livrar do aprendizado através da dor, que deve ser nosso e de ninguém mais. Isso seria um contra-senso inimaginável na lei de Deus, obstaculizando o nosso próprio progresso. Não quis Ele redimir-nos com a sua morte, mas apenas nos mostrar a necessidade da renúncia aos valores de nosso egoísmo, se queremos ser perfeitos e felizes. Quis valorizar a vida do espírito em detrimento da passageira vida na matéria. Quis que O seguíssemos no exemplo de amor e bondade, de não resistência ao mal, do perdão incondicional aos nossos algozes, única forma de efetuarmos a nossa própria redenção. E quanto aos nossos atos de maldade, não deixou Ele de nos deixar claro, que “quem com ferro fere, com ferro será ferido” e “não passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido”, mostrando-nos a necessidade de sofrermos em nós o mesmo mal que praticamos nos outros, a fim de equilibrarmos nossa consciência com os valores do bem real. Não adianta, na justiça da Lei de um Deus que é a perfeição suprema, nenhum sacrifício de inocentes, além do nosso próprio esforço evolutivo de melhoria íntima. Não podemos transferir a ninguém nossas dívidas para com a Lei, pois do contrário nossa concepção de uma divindade justa e perfeita, estaria seriamente comprometida. Somente este pode ser o mecanismo de uma Lei que provém de um Deus sábio e justo, que está muito acima de nossa parca psicologia de enganos.
Segundo esta forma de se pensar, a Eucaristia é fruto de uma psicologia religiosa primitiva e não deveria ser mais alimentada, pois a mentalidade e a inteligência do homem moderno avançaram e não mais admitem um pensamento que em nada se coaduna com a imagem que hoje fazemos da divindade. Continuar divulgando-a implica em permanecer alimentando nas mentes humanas, ainda pouco afeitas ao progresso do pensamento, a noção de um “deus” precário, humano, aquele que se irrita com nossas maldades e que necessita de sacrifício de alguém para ser acalmado, precisa “ver” sangue para se sentir satisfeito. Então continuaremos a “lhe” oferecer o sangue de Cristo, simbolizado no vinho e o seu corpo, representado pelo pão, como se, diante do altar sagrado de nossas almas, estivéssemos sacrificando-O para oferecer a morte de um inocente, em nosso lugar, quitando assim nosso débito para com a Lei do Amor e livrando nossa consciência do peso do remorso e libertando-nos da necessidade da prática do bem. Um imenso contra-senso que não podemos mais aceitar, sem ver nessa prática um mecanismo primitivo e pueril, que nos lembra os antigos rituais macabros de sacrifícios de sangue, diante dos altares religiosos. Em síntese, fruto de uma religiosidade primitiva e ultrapassada, que já não serve ao homem moderno e que deveria ter sido abandonada nas eras medievais.
Numa tentativa de salvar o ritual e justificá-lo diante da mentalidade humana que evoluiu e não pode compreender a permanência de tal absurdo, a filosofia escolástica confeccionou a teoria da transubstanciação, para explicar a presença real de Cristo no sacramento da Eucaristia, pela mudança da substância do pão e do vinho em Seu corpo e Seu sangue. A misericórdia do Senhor, complacente com nossa imensa ignorância, com Seu incomensurável amor, naturalmente não deixará de estar presente, bendizendo o nosso ato e se manifestando, envolvendo o pão e o vinho, com vibrações de Sua compaixão, que certamente fará algum bem, ao fiel que o mereça. Mas não será necessário que a matéria constitutiva do pão e do vinho sofra um milagroso processo de transformação de sua natureza, apenas para satisfazer aos nossos caprichos. Nos meios espíritas, diríamos que nada impede que o espírito de Cristo esteja realmente envolvendo a matéria do pão e do vinho, com Sua vibração de carinho e bondade, fluidificando-os e tornando-os benfazejos para nós. E para isso, no entanto, não precisamos do altar de um templo católico, pois podemos ter essa mesma vibração, em qualquer lugar, em qualquer tempo, no altar bendito de nossa própria consciência. Basta uma sinceridade de sentimentos que nos conecte com as vibrações do Cristo, pois onde nos reunirmos em Seu nome e O invocarmos com o mais sagrado propósito, ali Ele estará.
Belo Horizonte, 31 de Janeiro de 2000
Gilson Freire
Bibliografia:
CRISTO - capítulo III - Pietro Ubaldi – Editora Instituto Pietro Ubaldi.
A Bíblia – edição eletrônica da Associação Cultural Thélos.