Um Novo Conceito de Enfermidade
Gilson Freire
Este texto é um resumo de um dos capítulos do livro Saúde e Espiritualidade volume II, publicado em 2014 pela Editora INEDE. Foi também publicado na Revista Biofosia, n. 47, de outubro de 2018, editada em Portugal. Para os leitores de homeopatia, ele representa uma INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA DINÂMICA MIASMÁTICA, por isso assim ele se acha denominado no Menu "Artigos de Homeopatia".
Bases para uma Nova Compreensão da Enfermidade
Gilson Freire
INTRODUÇÃO
Uma nova medicina para um novo homem do século que se inicia, requer um novo conceito de enfermidade. E um novo conceito de enfermidade, por sua vez, suscita um inovador critério de homem, sobre o qual se apoiar e desenvolver renovados conhecimentos e eficazes terapias. Os tratamentos propostos pela ciência médica atual, embasados no reducionismo materialista e na visão mecanicista da vida, parecem atingir o seu limite, ao decifrar os últimos elos das interações bioquímicas e os códigos gênicos que os produzem. Enzimas e defeitos em suas interações terminam como sendo o derradeiro responsável pelo adoecimento humano, fazendo-se o único alvo terapêutico de todo o moderno arsenal farmacológico. No entanto, não podemos mais justificar nossa saúde e nossa doença a átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio de que se compõe a vida. Faz-se indispensável um novo entendimento do que é de fato o homem, do que realmente produz sua vida e sua consciência, e quais sãos as suas reais dimensões, para enfim determinar como e por que ele adoece e então, somente então, desenvolver novos e seguros procedimentos terapêuticos para lhe conferir uma saúde verdadeira.
Ao pensador que se aprofunda na compreensão do significado da vida e questiona o que é o ser humano, para onde se orienta a sua caminhada e qual o seu destino, a consideração de que ele é nada mais que uma secreção neuronal não mais serve como resposta definitiva sobre a estonteante fenomenologia que percebemos em nós mesmos. O sentimento de uma unicidade diretora presente em nosso funcionamento e a certeza de que nosso ser pensante está além de nosso próprio corpo são inquestionáveis realidades, demonstrando-nos que uma medicina materialista e de superfície não pôde alcançar os reais fundamentos da vida e da doença e alçar-nos a uma verdadeira saúde. Reconhecemos que a medicina é exitosa em impor momentâneo controle aos desarranjos biomoleculares e seus efeitos imediatos, não obstante, ela não conseguiu até então atuar sobre os fatos que os induzem e sequer impedir que os desequilíbrios reincidam ou direcionem-se para outros sítios orgânicos. Ora, como curar, sem saber o que é o fenômeno humano em sua natureza essencial e qual o papel que a doença cumpre no concerto da vida? Uma verdadeira medicina deveria estar aberta a pesquisar o que é exatamente a manifestação humana, quem de fato a produz, qual a sua origem e o seu destino, por que ela adoece e qual a função biológica do adoecimento, para então alcançar a real causa de seus distúrbios e impondo-lhes eficaz controle.
Este texto representa uma mera introdução a esses questionamentos e não se propõe e revolvê-los definitivamente. Não se pode ter tamanha pretensão. Trata-se unicamente de um ensaio de introdução ao tema, intencionando servir-se como uma simples base para futuros e mais abrangentes estudos. A proposta aqui apresentada não é uma elaboração do autor, que apenas se digna a repetir conceitos apreendidos da homeopatia, trazidos pela genialidade de seu fundador, Samuel Hahnemann. E traz nada mais que a esperança de algo contribuir com o desenvolvimento de novas ideias que venham a embasar uma Nova Medicina, para os Novos Tempos.
UM NOVO CONCEITO DE HOMEM
Muitas disciplinas humanas na atualidade, como a ciência esotérica, o espiritismo e algumas medicinas complementares, mostram-se abertas à ideia de que o homem é uma unidade multidimensional, sendo seu arcabouço físico nada mais que o último elo de uma cadeia de corpos interpostos. Destarte, não foram ainda suficientemente convincentes a ponto de suscitar a ciência ortodoxa a buscar comprovações para essa inferência, e sequer bastante persuasivas para impor à medicina novos caminhos terapêuticos. Enquanto a medicina permanece fixada nos pressupostos materialistas, compreendendo o fenômeno humano nada mais que um jogo de interações bioquímicas, os profissionais de saúde, ainda que aficionados às crenças espiritualistas, continuam atrelado à mesma prática médica materialista convencional, sem encontrar uma aplicação terapêutica compatível com seus avançados preceitos. Não assistimos, portanto, até então, à tão esperada revolução que a Era do Espírito nos promete. Daí a necessidade de investirmos na fixação desses avanços.
Muitas são as evidências de que o homem é mais do que uma simples coleção de órgãos, de modo que não se pode insistir em negar essa realidade em obediência a preconceitos ou à falta de apoio da ciência oficial, que ainda não deu sua última palavra. Se ela não pôde comprovar essa realidade, por faltar-lhe elementos de comprovação laboratorial, não foi capaz também de negar-lhe a existência. Muitos são os exemplos de que conceitos formalmente negados pelo pensamento científico em uma época tiveram de ser refeitos mais tarde com o aprimoramento de seus instrumentais de pesquisas.
Hoje a ciência atesta com segurança que um campo de energias sutis sustenta o redemoinho atômico e o próprio universo, comprovando-se o que nos afirmou Einstein: “Podemos considerar a matéria como sendo constituída por regiões do espaço nas quais o campo é extremamente intenso. Não há lugar nesse tipo de Física para campo e matéria, pois o campo é a única realidade”. Portanto, não constitui um despropósito científica afirmar que a unidade humana também é mantida e organizada por um campo de forças ainda não identificado pelos instrumentais disponíveis na ciência.
Há fortes evidências no terreno das perquirições e a história traz rumores, oriundos de diversas culturas, algumas milenares como a chinesa e a indiana, de que o homem é a fusão de diversos domínios sutis. Algumas identificaram a existência de sete corpos, que iriam desde o mais denso, a carne, aos mais sutis, como o astral e o mental. Entre essas culturas, chamadas em seu conjunto de ciências ocultas e cuja fonte de conhecimentos advém de percepções intuitivas e informes que se perdem nas noites dos tempos, destaca-se a Teosofia e seu imenso acervo de dados, apresentando propostas convincentes da realidade desses sete corpos humanos. Este trabalho não se propõe a revisar e abordar a composição humana em “sete corpos”, na sua magnitude histórica e cultural. Restringir o fenômeno humano a três dimensões apresenta-se como uma proposição mais explícita, satisfazendo a exigências interpretativas deste estudo. Assim, como hipótese de trabalho, conceberemos o homem como um composto ternário, feito de uma consciência imaterial, um campo de energias sutis e uma contraparte material propriamente dita. Corpo consciencial, corpo dinâmico e corpo físico é uma forma objetiva de se denominar essas unidades, caracterizando-lhes os limites de ação, facilitando-se assim compreendê-los e abordá-los em uma perspectiva racional, de fácil aceitação para a dialética moderna.
O corpo consciencial seria a unidade diretora e organizadora de entidade humana. A sede do eu, onde são elaborados os pensamentos e a vontade, albergando ainda os ilimitados panoramas do inconsciente. Destituindo-se dos preconceitos que ainda dominam a racionalidade científica atual, denominar essa unidade de espírito favorece o seu entendimento, uma vez que nos leva a identificá-la com os atributos essenciais que lhe foram conferidos pelo pensamento filosófico e religioso de todos os tempos. Compreende-se espírito, portanto, nada mais que o princípio imaterial, incorpóreo, fonte da inteligência e da consciência, do qual se originam os processos psíquicos, a criatividade, a vontade, os sentimentos e os fundamentos éticos do ser humano. Embora possam ter distinções semânticas, considera-se aqui alma como sinônimo de espírito.
Já o corpo dinâmico seria o campo de atuação de uma especial força, o princípio anímico que produz a vida, sendo o motor das atividades metabólicas que sustentam o funcionamento orgânico, incluindo as percepções, a sensibilidade e as elaborações mentais dos seres humanos. Confunde-se, em algumas escolas filosóficas, com o conceito de alma, enquanto em outras, como as correntes vitalistas, é chamado de força ou energia vital, proposto como um verdadeiro molde de emanações etéreas que entreteceriam e sustentariam as formas biológicas. Foi ele exaustivamente enunciado por diversas escolas, ditas ocultistas ou místicas, ao longo da história humana, que o identificaram por percepções intuitivas, recebendo diferentes denominações. Os egípcios chamaram-no de Ka; os persas, de Kaleb; os hindus, de Linga-sharira; Pitágoras, de carro sutil da alma; Paulo de Tarso, de corpo espiritual; Paracelso, de corpo sidério; Leibniz, de organismo sutil; Mesmer, de fluido magnético; a ciência russa, de corpo bioplástico, entre outras muitas designações.
Samuel Hahnemann (Meissen, Alemanha, 1755-1843), o médico fundador da homeopatia no final do século XVIII, também chegou à conclusão da existência de um campo energético interposto na unidade humana. Ao realizar experimentos com substâncias altamente diluídas, o fundador da medicina dos semelhantes inferiu que não estaria lidando com substratos físicos, porém com emanações imateriais, que ele chamou de essências espirituais, por faltar-lhe melhor designação. Como os seres humanos respondiam a esses medicamentos sutilizados, Hahnemann concluiu que um substrato de igual natureza integraria o homem, chegando assim ao conceito de força ou energia vital. Desse modo, o sábio de Meissen não só chegou à conclusão da presença de um campo sutil na organização humana, como também à compreensão da natureza ternária do homem, concebendo-o como um composto feito de espírito, energia vital e corpo físico.
Segundo o pensamento homeopático, esses três elementos da composição humana estariam, além de integrados e interpostos em indissolúvel unidade, submetidos também a uma ascendência hierárquica. Ou seja, o domínio absoluto dessa unidade centraliza-se no espírito, seguido pelo corpo dinâmico, terminando no corpo físico. Assim, a energia vital foi chamada de “vice-regente da alma”, admitindo-se-lhe uma ação nada mais que automática sobre a estrutura carnal, estando subordinada diretamente ao determinismo do espírito. Esse conceito, embora bastante intuitivo, requer ser salientado a fim de que se compreenda adequadamente a etiologia dos desequilíbrios de nossas forças sutis e suas subsequentes induções dos distúrbios físicos. A organização carnal, portanto, seria o último elemento dessa unidade, representando nada mais que um campo de efeitos, jamais de causas. A ordem causal da fenomenologia humana, tanto normal quanto patológica, partiria, desse modo, do campo consciencial, tendo o manto dinâmico como elemento intermediário para terminar no corpo físico.
DOENÇA – UM DISTÚRBIO DE TERRENO
Uma vez que inferiu a existência de um campo dinâmico em ação no composto humano, fácil foi para Hahnemann perceber que toda e qualquer enfermidade natural, além de sustentar-se nesse domínio, manifesta sua perturbação por meio de uma sintomatologia própria, caracterizada por alterações sutis e subjetivas das sensações e emoções humanas. Essa conclusão não era apenas produto de suas acuradas observações, mas revelavam-se igualmente em seus experimentos. O fundador da homeopatia experimentava seus medicamentos diluídos e agitados em pessoas saudáveis, prática denominada patogenesia, e notou que essas substâncias assim sutilizadas despertavam um quadro sintomatológico em tudo semelhante ao que os doentes apresentavam, mesmo antes de adoecerem seus órgãos – ou seja, um distúrbio de ordem subjetiva e geral antecederia sempre a localização da enfermidade em um sítio orgânico.
O corpo físico comprovou-se então ser a última etapa do processo mórbido. O homem adoeceria como um todo, fazendo migrar seu distúrbio da consciência profunda para a sua superfície, a unidade orgânica. Toda enfermidade seria então, em sua origem, uma desordem espiritual, a expressar-se inicialmente como uma anomalia dinâmica, manifestando-se, antes de localizar-se em um determinado sítio ou órgão físico, por meio de perturbações globais, como indisposições, mal-estar, mudanças de caráter, alterações de sensibilidade e sintomas gerais inespecíficos.
O adoecimento humano obedeceria, desse modo, segundo Hahnemann, a um impulsor fundamental, de caráter energético ou dinâmico, alinhado inicialmente no campo vital do ser humano, como uma emanação mórbida essencial. Por faltar-lhe palavras adequadas para denominar os novos conceitos que sua observação suscitava, o mestre de Meissen chamou de miasma a esse pulso de natureza imaterial, definido por ele como uma perturbação dinâmica. Palavra em desuso no jargão médico, os dicionários correntes designam miasma como espécie de “emanação a que se atribuía o contágio das doenças infecciosas e epidêmicas”, além de referir-se à “exalação pútrida que emana de animais ou vegetais em decomposição” (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). A homeopatia incorporou-o, no entanto, com o significado de uma pulsão ou força enfermiça, não pertinente ao domínio orgânico ou material do ser humano, porém energético e indutor de subsequente distúrbio físico.
O moderno conceito de campo da física, ao qual já nos referimos, talvez possa socorrer-nos no entendimento do que seria o miasma homeopático. Define-se campo como a “região sob influência de alguma força ou agente físico”– por exemplo, campo eletromagnético, campo gravitacional etc. De igual modo, poderíamos admitir a existência de uma força ou tendência orgânica deletéria capaz de gerar em seu raio de manifestação um campo mórbido. Esse seria o miasma hahnemanniano, passível de impregnar uma determinada região do organismo, induzindo ao mau funcionamento as células que o integram. Hahnemann introduz-nos assim no conceito de uma entidade dinâmica ainda não identificada ou definida pela ciência atual, mas que pode ser constatada pelos seus efeitos, como veremos a seguir.
Esse distúrbio dinâmico foi também denominado em seu conjunto de perturbação de terreno, juntamente com o quadro sintomatológico de que se faz acompanhar, manifesto inclusive em forma de sensações e alterações mentais e não apenas físicas. A doença então se inicia como um terreno enfermiço, uma predisposição mórbida, não localizada, para então fixar-se em uma determinada região orgânica. Primeiro adoece o homem, somente depois, perturba-se sua veste carnal. Assim, passou-se a compreender em homeopatia que toda doença começa como um distúrbio de terreno, de natureza dinâmica, o qual se procura reconhecer e identificar, antes mesmo que se converta em enfermidade física, diagnosticável laboratorialmente. A doença física é então vista como um “cogumelo” que somente surge e se desenvolve caso encontre condições ambientais favoráveis à sua sobrevivência. Portanto, deve interessar à arte da cura o conhecimento dessas condições mórbidas, muito mais que a doença em si. E compreende-se, nessa proposta, que não basta dispor-se a eliminar a enfermidade com métodos coercivos, se as condições que favorecem o seu desenvolvimento mantém-se íntegras e ativas, pois o “cogumelo” voltará a nascer se o terreno continuar favorável ao seu sustento. Por isso, o tratamento homeopático deixou de enfocar a enfermidade, o que era feito nos seus primórdios, para ocupar-se prioritariamente do enfermo e suas condições mórbidas. “Há doentes e não doenças” é um aforismo cediço comumente suscitado pelos homeopatas, que o imputam ao próprio Hahnemann, e os historiadores atribuem a Hipócrates.
Na compreensão da suscetibilidade ao adoecimento reside então toda a genuína arte da cura. Por isso, o estudo da suscetibilidade ou condição mórbida que induz ao subsequente adoecimento passou a ocupar a atenção das pesquisas em homeopatia. Há em toda doença, um campo alimentado pelo doente, que a favorece, o qual precisa ser abordado como um todo, para não só se alcançar a real fonte de sua perturbação como também estabelecer meios mais eficazes de se combatê-la. Portanto, esse seria o caminho para se introduzir a medicina na busca pelas verdadeiras causas das enfermidades humanas, levando-a a ocupar-se não só com o fenômeno mórbido em si, mas com sua real origem.
No estudo da suscetibilidade, a homeopatia fez outra interessante constatação: o adoecimento de terreno admite características próprias em cada doente. O que pode levar um ser humano a adoecer é distinto do que induz um outro ao desequilíbrio. A isso se convencionou chamar idiossincrasia, fator determinante da individualização do tratamento homeopático. Doenças iguais são tratadas de modo distinto de acordo com as predisposições constitutivas de seus “terrenos mórbidos”. E doenças diferentes podem receber o mesmo tratamento, se seus “terrenos” se mostram semelhantes. Isso se tornou possível pelo fato de que os medicamentos experimentados pelo método homeopático se mostravam capazes de tratar o mesmo distúrbio particularizado de terreno que produziam nas pessoas saudáveis – a aplicação da chamada Lei dos Semelhantes.
Ante esse novo conceito de enfermidade – embasado na multidimensionalidade da vida e na inferência de que a doença humana advém de planos mais profundos – abre-se um campo de conjecturas para se admitir que todo fenômeno mórbido não seja um mero fracasso ou um acidente biológico, mas um evento com função predeterminada, que obedece a leis universais, estabelecidas por propósitos superiores ainda ignorados. Haveria, assim, sobretudo para os seres conscientes, uma motivação até então desconhecida para a enfermidade e o sofrimento que ela carreia. Sua presença na vida humana poderia ser compreendida como a correção da desarmonia interna que a produz. Portanto, a enfermidade seria um indutor de novos equilíbrios para os desvios humanos, agindo, assim como a seleção natural, como um dos mais poderosos impulsores da evolução.
São preceitos teóricos que não puderam ainda ser comprovados pela ciência, mas que encontram respaldo em muitas correntes de cunho filosófico e religioso, tidas como válidas pelo pensamento humano. A despeito da nuvem de incertezas que os envolvem, eles guardam um imenso potencial especulativo, capaz de suscitar novos caminhos de entendimento para o fenômeno mórbido e de dilatar os horizontes médicos em futuro próximo.
DINÂMICA MIASMÁTICA – A FISIOPATOLOGIA DE TERRENO, SEGUNDO A HOMEOPATIA
Uma vez constatado que, antes de um órgão doente, existe um terreno mórbido que leva esse órgão a adoecer, as perquirições homeopáticas voltaram-se para pesquisar como esse terreno se perturba, ou seja, como se origina o miasma e como ele manifesta seu desequilíbrio, antes de conferir ao universo celular o seu desarranjo. Desse modo, a homeopatia iniciou o estudo da fisiopatologia do terreno, o que se convencionou denominar dinâmica miasmática.
Esse trabalho foi iniciado por Hahnemann nos oito últimos anos de sua vida, depois de haver arquivado criteriosas observações clínicas ao largo de mais de 30 anos de prática médica. E publicou suas interessantes conclusões em sua última obra, Doenças Crônicas12. Nesse profícuo estudo, realizado alguns anos antes de Rudolf Virchow criar a patologia médica, o fundador da homeopatia compreendeu que o distúrbio de terreno, nas chamadas doenças naturais ou endógenas, manifesta-se de três maneiras distintas: umas restringem-se a perturbar as funções celulares; outras produzem perda de massa orgânica, ocasionando ulcerações e eliminações pútridas; e existem aquelas que induzem o organismo a construções impróprias e excedentes, levando as células a trabalhar e crescer além de seus naturais limites. As primeiras são as doenças funcionais, responsáveis pelas disfunções orgânicas diversas; as segundas representam as enfermidades de caráter destrutivo; e as últimas, as moléstias de aspecto neoformativo ou proliferativo. Em resumo, para Hahnemann existiriam então três formas básicas de se produzir o adoecimento humano: a doença funcional, a degenerativa e a hiperformativa. O mestre de Meissen, mais uma vez, por falta de terminologia adequada, denominou o primeiro distúrbio, a disfunção, de Psora (termo grego que significa mancha); o segundo, de Sífilis, por ser esta, em sua época, a mais comum das enfermidades de caráter destrutivo; e ao adoecimento hiperformativo, de Sicose (palavra também de origem grega que significa verruga, o mais comum dos crescimentos orgânicos inadequados).
Psora, Sífilis e Sicose passaram então a designar, em homeopatia, as três doenças crônicas de caráter “miasmático” do homem, ou seja, as três formas básicas de se perturbar o terreno e se induzir todo e qualquer subsequente adoecimento físico. Ressaltemos que Hahnemann referia-se a forças mórbidas que levam o organismo a adoecer, e não a entidades clínicas propriamente ditas. Como o célebre médico alemão não teve tempo de esclarecer-nos devidamente o seu pensamento, o tema mostrou-se inicialmente confuso, levando muitos de seus seguidores a interpretar a Sífilis miasmática como a própria enfermidade venérea e contagiosa; a Sicose, como sendo o condiloma acuminado (uma verruga venérea induzida pelo papilomavírus humano, o HPV), e a Psora foi relacionada à escabiose, ou sarna, a mais frequente das enfermidades que, digamos assim, “mancham” a pele do homem.
Mediante a colaboração de vários estudiosos da homeopatia, sendo os principais Jayme Tyler Kent, Henry Allen, N. Ghatak, Herbet A. Roberts e, sobretudo, o notável homeopata argentino, Alfonso Masi Elizalde (1932-2003), é que a temática encontrou o seu desenvolvimento lógico e sua perfeita aderência à realidade fenomênica observada na prática médica. Com o auxílio desses autores é que se chegou às conclusões delineadas a seguir, apresentadas de modo sucinto como uma introdução ao tema. Deve-se, no entanto, ter em mente que essas conclusões ainda são pouco conhecidas dentro da própria homeopatia e não se acham, até então, perfeitamente difundidas em todas as escolas que integram essa disciplina na atualidade. Por isso o tema admite diferentes interpretações.
Esses autores deixaram claro que os chamados miasmas crônicos devem ser compreendidos como impulsos, forças-tendências ou pulsões mórbidas que induzem e direcionam a fisiopatologia humana. Falemos, portanto, de campo psórico, campo sifilítico e campo sicótico, correspondentes ao adoecimento funcional, degenerativo e hiperformativo, respectivamente, a fim de evadirmo-nos das comuns associações com suas correspondentes entidades clínicas. Logo, onde há um distúrbio funcional (ou quanto muito, segundo o conceito de Hahnemann, doenças cutâneas benignas), o miasma psórico está em ação. Se a ação mórbida age segundo um caráter hipotrófico ou destruidor de tecidos, o estigma sifilítico acha-se atuando. E se está patente o predomínio de exagerado crescimento orgânico, a tara sicótica está agindo no campo físico. No entanto, esses três modos de adoecimento não são fenômenos isolados, porém representam a progressão de um mesmo movimento que se inicia como um simples distúrbio funcional para, em seguida, tomar o direcionamento do polo sifilítico ou do polo sicótico, levando ao progressivo desenvolvimento de suas correspondentes entidades clínicas. Assim, compreende-se que o adoecimento inicial é a Psora, a perturbação em base a qual o organismo vai escolher o caminho da Sífilis ou o da Sicose. Exatamente por isso, a Psora foi chamada a mãe de todas as doenças – sem sua ação primária não haveria o estabelecimento dos outros dois subsequentes miasmas.
Fig. 1- A inter-relação dinâmica entre Psora, Sífilis e Sicose, os três estados miasmáticos fundamentais, como duas polaridades de um movimento único de sentidos opostos.
A célula então, segundo a fisiopatologia proposta pela homeopatia, inicialmente perturba-se e adultera o seu funcionamento, sem, no entanto, estabelecer uma lesão física. Apenas suas funções passam a não se cumprir corretamente. Uma vez iniciada a trajetória mórbida sob a ação da Psora, a célula deve eleger entre o caminho da degeneração ou o da hipertrofia, sob a orientação do tipo de dinamismo mórbido que o organismo adota. Assim, toda Sífilis e toda Sicose originam-se de uma base psórica, definida, desse modo, como a predisposição mórbida, a condição inerente à natureza humana que a leva ao adoecimento.
Aplicando-se esse mesmo conceito ao campo dinâmico, concebe-se facilmente que a energia vital inicia também seu desequilíbrio passando de um ritmo eutônico ou eurrítmico para a distonia ou a disritmia. A partir dessa primordial manifestação, o campo energético encaminha-se para a hipotonia ou a hipertonia de seus pulsos. Logo, a energia vital, assim como o corpo físico, adoece de Psora e depois de Sífilis e de Sicose.
De igual maneira, pode-se imaginar que a mente humana deflagre seu adoecimento começando por perturbações funcionais próprias da esfera psíquica, caracterizadas como ansiedades, inquietudes, inseguranças ou medo. A seguir, evoluiria para os estados mentais de desalento e decaimento vital, ou, por outro lado, para quadros psíquicos de euforia e excessiva vitalidade, desde manifestações inaparentes, consideradas normais, até as doenças psiquiátricas propriamente ditas, como manias, esquizofrenias etc. E tem-se, assim, que no plano mental humano pode-se identificar a mesma manifestação ternária de Psora, Sífilis e Sicose.
Como o raciocínio homeopático considera a expressão humana uma manifestação unitária e hierarquizada em três domínios, o mental, o energético e o físico, torna-se claramente compreensível que os pulsos miasmáticos psórico, sifilítico ou sicótico partam das instâncias mais profundas do homem, o plano mental, a partir do qual impregnam o campo dinâmico que, por sua vez, terminam induzindo a esfera física ao seu correspondente adoecimento, segundo sua inerente tendência. Dessa forma, estabelece-se em homeopatia a perfeita correlação mental, energética e física do adoecimento humano, compreendendo-se que a enfermidade orgânica nada mais é que a configuração exterior daquilo que impera no interior do homem. Ou seja, um gradiente mórbido, gerado em seus planos profundos e imateriais, termina por ser impresso, por meio do veículo dinâmico (a força vital), na esfera orgânica.
Fig. 2 - Os desequilíbrios fundamentais da mente (CM, campo do ego) determinam as perturbações do campo energético (CE), que terminam, por sua vez, impondo-se ao campo físico (CF), representado pela célula. Esta se perturba, destrói-se ou hipertrofia-se. No centro, vemos em ação a Psora; à esquerda, a Sífilis; e à direita, a Sicose, nos planos mental, dinâmico e físico, de cima para baixo, respectivamente.
Uma vez descoberta a perturbação miasmática do ser humano, acuradas observações suscitaram aos homeopatas importantes e curiosas particularidades de seu mecanismo de ação. Uma das mais importantes, denominada satisfação da suscetibilidade, considera que os miasmas, uma vez que se direcionam para o corpo físico, tendem a se acalmar nos planos profundos. Fenômeno também conhecido como drenagem mórbida, revela que a doença física traz uma intenção curativa do pulso miasmático profundo, uma vez que o leva a “desaguar-se” e esgotar sua morbidez nas “camadas” superficiais da unidade humana. Se o distúrbio orgânico é simplesmente detido por métodos de supressão de sintomas (tratamentos convencionais), haverá sempre um recrudescimento da pulsão miasmática, que não somente tenderá a “desafogar-se” em novas recidivas do mal físico, mas igualmente, e o que é pior, poderá aprofundar-se, manifestando-se em órgãos mais internos, por meio de enfermidades de igual caráter, porém mais graves. A força mórbida que induz ao adoecimento humano poderia então ser comparada a um iceberg, que sempre fará emergir novas protuberâncias de sua massa total e profunda, desde que uma delas seja amputada. Hahnemann comparou, entretanto, o comportamento dos miasmas à figura mitológica da Hidra – o monstro de nove cabeças que vivia no pântano de Lerna e que, além de ter um sopro mortal, desenvolvia duas cabeças para cada uma que se lhe cortavam.
Portanto, a conclusão a que se chegou a partir dessas observações é que a simples supressão de um tumor, por exemplo, é capaz de redirecionar a evasão da pulsão sicótica que o alimenta para o plano mental. E conclui-se que toda construção anômala do organismo é uma espécie de contrapeso orgânico que mantém o tônus miasmático na superfície corporal, fazendo esgotar aí o seu potencial destruidor. Sua presença no corpo físico deveria então ser tolerada ao máximo, caso não ameace a vida do indivíduo ou sua integridade orgânica. E o mesmo se pode deduzir das doenças funcionais e das degenerativas – uma vez suprimidas, terão seus mananciais enfermiços dirigidos para sítios orgânicos mais profundos, chegando por essa via à mente do homem, seu mais nobre plano de manifestação.
Compreendeu-se também que a movimentação miasmática na mente é instantânea, ou seja, é capaz de se mover rapidamente de um estímulo sicótico para um recolhimento sifilítico. O campo energético adapta-se prontamente aos novos padrões dinâmicos que lhe são impostos pela mente. O plano físico, no entanto, tarda a moldar-se ao novo resultado desses movimentos miasmáticos. Por isso, torna-se possível encontrar um doente com construções mórbidas nitidamente sicóticas, enquanto seu estado íntimo de abatimento configura-lhe situar-se na sífilis homeopática. Portanto, o corpo físico tenderá a se adaptar ao gradiente predominante na vida do indivíduo e não ao resultado último em que se encontre.
Todavia, a conclusão de maior alcance que a teoria miasmática suscita é a que diz respeito à sua origem. O conceito de hierarquia, ao estabelecer que o espírito é o governador da unidade humana, deixa claro que Psora, Sífilis e Sicose não só se manifestam inicialmente no plano consciencial, mas têm aí a sua fonte. Assim, o psiquismo humano e sua veste personalística passaram a ser o foco dos estudos dos miasmas, suscitando-se novas abordagens terapêuticas que interfiram em suas produções. Campo de trabalho ainda em desenvolvimento em homeopatia, aguarda o avanço de estudos e pesquisas e, sobretudo, a colaboração de outras disciplinas humanas, como a psicologia, para se instituir métodos não medicamentosos, capazes de salutar e eficaz controle do comportamento humano na gênese dos miasmas.
Na Argentina, Masi Elizalde, a partir dos anos 80, propôs a denominação de dinâmica miasmática ao tema em questão, ao denotar a plasticidade, a interação e a pronta reversibilidade dos estados miasmáticos, desde o plano mental, de onde são deflagrados, até o campo energético e, posteriormente, ao físico. A Psora na mente foi compreendida como a instabilidade emocional, a vivência inadequada das angústias existenciais humanas, em suas expressões de carências, temores e culpas, vividas como ansiedades, inquietudes e inseguranças. Diante de um ser humano padecendo pelas angústias próprias de nossa espécie, sentindo-se portador de carências as mais diversas e sofrendo por elas de modo inadequado, identificamos a manifestação da Psora em seu psiquismo. Se, no entanto, esse mesmo indivíduo encontra-se dominado pelo desalento, com intenção de abandonar suas atividades e refugiar-se em estados depressivos, ele estará experimentando a manifestação do miasma sifilítico. Se, ao contrário, o entusiasmo lhe excede e ele parece estabelecer-se em um patamar de superioridade das forças psicofísicas, então o veremos sob os embalos da Sicose. Identificamos assim um estado psíquico distônico fundamental, um hipotônico e outro hipertônico, a alimentar, respectivamente, a Psora, a Sífilis e a Sicose nos domínios dinâmicos e físicos do ser humano, configurando suas correspondentes enfermidades.
Masi Elizalde, ao perceber que as instâncias do ego e seus moldes psíquicos são os verdadeiros deflagradores de todo o processo mórbido, propôs então a utilização de nova nomenclatura para as pulsões miasmáticas: a Psora poderia chamar-se egodistonia (de ego, o eu, o princípio psíquico e diretor do indivíduo, e distonia, do grego dis, mal funcionamento, e tonus, do latim, intensidade, tensão); a Sífilis homeopática passaria para egolise (ego+lýsis, do grego, rotura ou quebra), representando as condições de degeneração do psiquismo humano; e egotrofia (ego+trophía, do grego, nutrição ou desenvolvimento), para os quadros de manifesto exagero do eu. Nomenclatura não só mais apropriada, mas que também se evade dos equívocos interpretativos que os nomes originais sempre suscitaram.
Assim, a Psora relaciona-se aos estados de ansiedade, instabilidade, angústia, medo e sensações carenciais, as mais diversas possíveis, como a carência de afeto, de amparo, de força, de justiça, de paz, de segurança, de felicidade, por exemplo. Representa a distonia do ego, ou a egodistonia. A egolise designa a degeneração do ego, a qual se manifesta através da perda da autoestima e as mórbidas tendências à autodestruição, que podem culminar com a fuga esquizofrênica ou o suicídio. Já a egotrofia assinala os perfis de comportamento humano caracterizados pela supervalorização de si mesmo em relação aos demais, ou seja, o egoísmo franco, a egolatria, a soberba e o autoritarismo – atitudes próprias do ego que se posiciona acima dos demais. Tendência normalmente acompanhada de excessivo entusiasmo e desmedida vontade realizadora.
Evoluindo o tema, Masi Elizalde compreendeu que tanto a egolise quanto a egotrofia seriam nada mais que reações defensivas do estado psórico fundamental. Então, Sífilis e Sicose homeopáticas passaram a caracterizar as duas possíveis reações de defesa da Psora. Sendo os sofrimentos humanos intoleráveis no seu estado puro, o psiquismo cuida de construir suas defesas, quase sempre impróprias. Inicialmente, ele tenta evadir-se deles, refugiando-se nos quadros depressivos e degenerativos da mente, movimento que leva ao recolhimento e ao desalento, e pode terminar com o suicídio. Ou, como segunda possibilidade, o ser decide, ainda que inconscientemente, enfrentar suas angústias, carências e deficiências, hipertrofiando sua maneira de ser a fim de compensá-las. Sífilis e Sicose, portanto, são atitudes e hábitos com que vestimos nossa personalidade na intenção de aplacar-nos as múltiplas carências e angústias, próprias da existência. Chega-se assim à compreensão de que o homem adoece desde o mais profundo ao superficial, sendo o físico um espelho daquilo que se passa na sua intimidade. Se identificamos uma doença degenerativa, poderemos então procurar pelo predomínio dos estados egolíticos do enfermo, em algum momento de sua vida. E se estamos diante de um nítido adoecimento hiperfuncionante e hiperformativo, reconheceremos que a egotrofia esteve atuante na maior parte da existência do indivíduo.
Como já foi dito, no plano mental, os estados miasmáticos são altamente dinâmicos e facilmente cambiáveis, enquanto o plano físico exige tempo para adaptar-se ao gradiente enérgico em pauta no momento. Fato que nos permitirá identificar em um doente em franca egolise mental a presença de patologias orgânicas sicóticas. E entenderemos, sem muita dificuldade, que um organismo acomodado na posição egotrófica, ao mudar seu campo mental e dinâmico para um estado egolítico, deverá apresentar um rápido decréscimo de sua massa, o que faz através das chamadas exonerações ou drenagens mórbidas, veiculadas pelas doenças agudas. E chega-se à extraordinária compreensão de que há uma motivação para os episódios agudos que sofremos em vida – não são mais que exonerações do “miasma” dominante e uma tentativa de reequilíbrio do organismo. Condição frequentemente vista nas crianças que começam a desenvolver doenças febris no instante em que lhes são impostos os grandes desafios do crescimento humano, como o início da jornada escolar, por exemplo.
Justo esclarecer que, curiosamente, ao mesmo tempo em que Hahnemann estabelecia o aspecto ternário do adoecimento humano, suas experimentações com medicamentos revelavam que as substâncias medicinais sutilizadas despertavam nos experimentadores um corpo sintomatológico que, tanto no plano mental quanto no físico, configuravam a exata manifestação trimiasmática observada na clínica. Assim, cada medicamento homeopático, com rica patogenesia, apresenta com nitidez um cortejo de sintomas psóricos, sifilíticos e sicóticos. E a homeopatia passou então a empregar um medicamento pela capacidade que ele detém de suscitar um desequilíbrio dinâmico de terreno idêntico ao do doente. Com isso, impôs-se ao homeopata o trabalho não só de conhecer a história natural da enfermidade que no momento porta seu paciente, mas igualmente a identificação de seus estados miasmáticos e a procura por um medicamento homeopático que corresponda com exatidão ao seu dinamismo mórbido. O homeopata, dessa forma, para medicar corretamente e seguir a evolução do seu doente, deve entender como ele constrói seu adoecimento ao longo da vida, identificando os sofrimentos básicos que lhe servem como motivações para deflagrar a egodistrofia; como se revelam seus movimentos defensivos de egolise e as razões últimas que o levam a construir sua malfadada aventura egotrófica de autoafirmação.
Esse novo modo de trabalho, que exige demorado contato com o paciente e íntima interação com sua alma, gerou em homeopatia uma nova escola, chamada miasmática ou de terceiro nível, como a mais fina e evoluída caracterização do unicismo homeopático. Ele induz-nos à satisfatória compreensão de que, quando o organismo constrói tumores, ele não age por mero acaso, mas está sob o embalo da tara sicótica, a excessiva egotrofia humana; e, igualmente, ante o avanço das doenças hipotróficas e degenerativas, faz-se preciso reconhecer a ação degenerativa da egolise humana e suas motivações, muitas vezes ocultas aos olhos do médico. A ação do medicamento homeopático seria de estimular o equilíbrio dessa dinâmica mórbida, impondo silêncio à Psora, o chamado estado de latência psórica, a condição de saúde possível em nossa espécie e o critério de alta do tratamento homeopático.
Como se pode antever, o tema admite múltiplas possibilidades, sendo capaz de suscitar a medicina a mudar substancialmente o seu alvo terapêutico, que passaria da doença para o doente, aumentando assim sua capacidade de conferir-nos uma saúde verdadeira e estável. E, ao levar-nos a conhecer as angústias humanas em suas mais profundas e originais manifestações, mostra-se ainda uma maneira eficaz de introduzir-nos na patologia da alma, o fim último do conhecimento médico.
O estudo da dinâmica miasmática aprofundou-se a partir de então, reconhecendo as múltiplas manifestações interativas e reativas, deflagradas pela Psora, em ação na alma humana. Tanto a egodistonia, quanto a egolise e a egotrofia dividiram-se em diversas possibilidades de reações em cadeia, ampliando-se a análise dos miasmas para interessantes considerações que aqui não cabem ser desenvolvidas.
Entrementes, os questionamentos mais importantes da tese miasmática coligiram na busca pelas causas do sofrimento psórico fundamental, ou seja, a etiologia da Psora, desde que esta se mostra o deflagrador de todo o processo mórbido. Ao tentar responder a essa intrigante questão, os estudiosos da homeopatia não tiveram outro caminho senão atirar-se a perquirições filosóficas, dividindo-se entre múltiplas possibilidades, de acordo com crenças individuais. De um lado debatem evolucionistas e criacionistas, e de outro, materialistas e espiritualistas reencarnacionistas, sugerindo origens metafísicas para a Psora. São disquisições que, se não podem ainda ser respondidas com a precisão exigida pela ciência, revestem-se de vantagens para todos, uma vez que estimula o médico a adentrar um terreno até então inexplorado pela medicina: a reflexão filosófica.
A despeito das divergências sobre a etiologia da Psora, terreno altamente especulativo que exigiria um estudo a parte, o alcance dessas perquirições pode ser avaliado, por exemplo, na constatação da universalidade da dinâmica miasmática proposta pela homeopatia. Facilmente se compreende que a dinâmica dos miasmas é, na verdade, expressão da mesma dualidade de forças que impera não só na intimidade orgânica, mas em todo o Universo. Basta constatar que todos os fenômenos universais estão subordinados a dois impulsos alternantes e complementares que se fundem para produzi-los: a contração e a expansão. Assim é que nosso Cosmo se faz, em todas as suas instâncias, uma dança permanente de construções e destruições, mediante a combinação dessas duas potências, uma positiva e outra negativa. Psora e Sífilis correspondem ao estado negativo ou de contração das forças ego-orgânicas, e a Sicose, ao de expansão. E encontramo-nos com o fato de que nossa personalidade, assim como o Universo, está permanentemente embalada por um pulso duplo de forças em oposição. São as mesmas energias yin e yang, abraçadas na unidade do Tao, da concepção taoista e que movem todos os seres vivos. E representam também o instinto erótico (amor, vida) e tanático (morte), identificados por Freud e em ação permanente na instância psíquica do homem. Enfim, vemo-la igualmente no metabolismo celular, que se compõe de uma fase anabólica, ativa, que induz à síntese orgânica levando os seres vivos a ganhar massa, em alternância com a fase catabólica, a contração, o repouso, que conduz à perda de biomassa. Isso faz de todo organismo vivo uma junção de construções e destruições, crescimentos e degenerações, desenhando-se a vida como uma grande onda, expressa em fases oscilantes e alternadas. Esse é o embalo próprio da existência, o motor da vida, levando-nos a considerar que a dinâmica miasmática, identificada pela homeopatia, nada mais é que a expressão mórbida de um movimento que, em sua intimidade, é próprio da natureza.
Nessa visão mais abrangente do tema, a egolatria humana e sua imensa capacidade de impor dores e sofrimentos aos semelhantes ressurge como importante fator etiológico de todo o cortejo de patologias naturais encontradas em nossa espécie. A Psora e a reatividade egolítica passam a ser compreendidas como o polo oposto dessa egolatria. Essa fase negativa do dinamismo vital, no entanto, não seria simplesmente o produto da natural oscilação de seu movimento ondulatório, mas um pulso inibidor dos excessos do ego. Logo, essa pulsão restritiva poderia ser entendida como o estímulo de uma Lei superior que visaria a coibir os abusos do egocentrismo e seus males e excitar salutares atitudes altruístas no plano dos sentimentos, dos pensamentos e das ações do homem. São novas possibilidades de entendimento que suscitam o desenvolvimento de terapias comportamentais e evocam a ética como o mais importante agente indutor, tanto da doença quanto da verdadeira saúde humana.
Embora a teoria miasmática ainda aguarde o aval da ciência oficial para legitimar-se como factual, a presença de seus fundamentos nas histórias clínicas dos pacientes é uma realidade inquestionável que não pode ser contestada. Os consultórios de medicina homeopática estão repletos de exemplos que demonstram a legitimidade de seus postulados, convencendo-nos de que nos sutis e ilimitados tecidos conscienciais e suas arquetípicas bagagens encontram-se as motivações últimas para todo o adoecimento humano. Por isso, os pressupostos da tese miasmática e seu revolucionário conceito de enfermidade são um convite para que todos os profissionais da saúde atirarem-se a novos horizontes de pesquisas e de compreensão da natureza humana, visando ao desenvolvimento de múltiplas possibilidades terapêuticas, direcionadas ao controle do imenso potencial que detemos não só de adoecer, mas, sobretudo, de corrigir nossos desequilíbrios e manter-nos na correta via da saúde física e mental que todos almejamos.
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