Carta em Defesa de Ubaldi

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A OFERTA DE PIETRO UBALDI AO ESPIRITISMO, POR OCASIÃO DO

VI CONGRESSO ESPÍRITA PAN-AMERICANO DE 1963

(Uma Resposta à Crítica de Herculano Pires)

Que seria da humanidade sem a revelação dos homens de gênio, que aparecem de tempos em tempos?

Allan Kardec (A Gênese)

Não acredito, sinceramente, que Pietro Ubaldi, sendo um espírito da envergadura que é, necessite de que alguém levante a voz em sua defesa, em qualquer circunstância que seja. Bem como estou perfeitamente ciente de que minhas parcas possibilidades impedem de apresentar-me como um seu defensor. Não tenho tamanha pretensão. No entanto, em decorrência de trabalhos publicados, palestras e participações em seminários e congressos brasileiros, muitos passaram a caracterizar-me como um estudioso de Ubaldi, e com elevada frequência questionam-me sobre os diversos temas desenvolvidos em sua extensa e revolucionária obra. Não guardo cabedal de profundo conhecedor de todo o portentoso trabalho do Missionário da Úmbria, mas confesso-me um estudioso, aficionado e profundamente transformado pelas suas estupendas revelações. Sendo ainda espírita de berço, venho fazendo um enorme esforço para demonstrar, a quem se interesse, que o Apóstolo da Nova Era apenas agrega valores à Doutrina Espírita e nada destrói. E estou perfeitamente convencido de que, muito pelo contrário, sua inspirada obra contribui essencialmente para atualizar o Espiritismo e fundi-lo com perfeição ao Evangelho de Jesus, tornando-o de fato o Cristianismo Redivivo.

Dentre todos os pedidos de esclarecimentos que recebo, evidenciam-se os questionamentos referidos à famosa Carta-resposta de Herculano Pires, rebatendo a oferta que Ubaldi fizera aos espiritistas, por ocasião do VI Congresso Espírita Pan-Americano, em 1963, em Buenos Aires. Em decorrência disso, e devido ao enorme respeito que todos guardamos por um dos mais ilustres e respeitados pensadores do Espiritismo brasileiro, decidi publicar este pequeno e despretensioso artigo sobre tão polêmico assunto, para que se preste ao pesquisador espírita que se interesse pela delicada questão.

Eis na íntegra o referido artigo[1]:

“A mensagem que Pietro Ubaldi enviou ao VI Congresso Espírita Pan-Americano, realizado neste mês em Buenos Aires [outubro de 1963], vem causando estranheza nos meios doutrinários. Depois de discorrer sobre a estagnação das religiões, o autor de A Grande Síntese chega às seguintes conclusões:

1 - O Espiritismo estacionou na teoria da reencarnação e na prática mediúnica;

2 - Não possuindo ‘um sistema conceptual completo’, não pode ele ser levado a sério pela cultura atual;

3 - A filosofia espírita é limitada, não oferece uma visão completa do Todo e ‘não abrange todos os momentos da lei de Deus’;

4 – O Espiritismo não construiu uma ‘teologia espírito-científica, que explique o que a católica não explica’;

5 - O Espiritismo ‘corre o perigo de ficar parado no nível Allan Kardec, como o catolicismo ficou no nível São Tomás e o protestantismo no nível Bíblia’.

Diante dessa situação, propõe Ubaldi a adoção, pelo Espiritismo, dos livros de sua autoria, abrangendo a ‘série italiana’ e a ‘série brasileira’. E explica: ‘Trata-se de um produto realizado de uma forma que permite que ele caiba dentro do Espiritismo, porque atingido por inspiração’, que é por ele julgada a mais alta forma de mediunidade, aquela consciente, controlada pela razão. E logo mais afirma: ‘Só assim o Espiritismo poderá avançar paralelo à ciência e exigir atenção de parte dos materialistas, porque usa a forma mental e os métodos racionais dele. Só assim o Espiritismo poderá sair do trilho dos costumeiros conceitos que se repetem nas sessões mediúnicas e colocar-se no nível do mais adiantado pensamento moderno, penetrando no terreno da filosofia e da ciência e situando-se na sua altura’.

A redação e a tradução dessa mensagem de Ubaldi, como se vê, por estes pequenos trechos, estão muito abaixo do texto de suas obras mais inspiradas, que pertencem à ‘série italiana’.

Por outro lado, verifica-se que faltou a Ubaldi a percepção necessária para captar o processo espírita em suas verdadeiras dimensões. O admirável médium de A Grande Síntese revela absoluta falta de acuidade e de compreensão da realidade espírita no mundo de hoje, onde o Espiritismo vem cumprindo serenamente a sua finalidade. A sua crítica ao Espiritismo, resumida nos cinco pontos acima, coincide com a dos adeptos menos instruídos na doutrina, e pode ser respondida, ponto por ponto, por qualquer adepto de inteligência e cultura medianas, que conheça a Doutrina Espírita. Por outro lado, o oferecimento de suas obras ao Espiritismo revela desconhecimento da natureza da nossa doutrina e das exigências metodológicas para a aceitação da proposta, que não cobre essas exigências. Ubaldi desenvolveu suas faculdades mediúnicas à margem do Espiritismo. Seu primeiro livro, A Grande Síntese, apresenta curioso paralelismo com o Espiritismo, o que lhe valeu a simpatia e a amizade dos espíritas brasileiros. Na Itália ou no Brasil, porém, Ubaldi recusou-se sempre a integrar-se no movimento espírita, filiando-se na península à corrente da Ultrafânia, do prof. Trespioli, que pretende haver superado a concepção espírita. Em seu livro As Noures, Ubaldi nos oferece a concepção ultrafânica da mediunidade, na qual enquadra o seu caso pessoal. É uma pretensiosa concepção de mediunidade cósmica, fugindo à naturalidade e simplicidade das comunicações espirituais entre espíritos desencarnados e médiuns. As pretensões de Ubaldi o transformaram, de simples médium em autor messiânico, agora arvorado em reformador do Espiritismo.

Respondemos aos itens da sua crítica da seguinte maneira:

1 - O Espiritismo é uma doutrina evolucionista, como o provam as suas obras fundamentais e o seu imenso desenvolvimento em apenas cem anos de existência;

2 - O sistema conceptual espírita é completo e sua síntese está em O Livro dos Espíritos;

3 - A filosofia espírita não pode abranger o Todo e muito menos ‘todos os momentos da lei de Deus’, porque isso não está ao alcance de nenhuma elaboração mental, no plano relativo da vida terrena;

4 - A teologia espírita é limitada às possibilidades atuais do conhecimento de Deus, segundo ensina Allan Kardec, e essas possibilidades não admitem ainda a criação na Terra de uma teologia científica, nem dentro nem fora do Espiritismo;

5 - O ‘nível Allan Kardec’ não é o do Espiritismo, mas sim o ‘nível Espírito da Verdade’, de quem Kardec, segundo dizia, foi um ‘simples secretário’.

Encontrando-se, pois, nesse plano de revelação constante e progressiva, que é o da manifestação do Espírito da Verdade, segundo o próprio Kardec adverte, o Espiritismo está livre dos perigos da estagnação dogmática. Se, pelo contrário, adotasse as obras de Ubaldi para completá-lo, o Espiritismo cairia imediatamente no dogmatismo. Para cumprir sua missão, em todos os campos da atividade humana, o Espiritismo tem de manter-se como Ciência do Espírito (que investiga o elemento inteligente do Universo, paralelamente com a Ciência da Matéria, que investiga o elemento material); como Filosofia Livre, ‘sem os prejuízos do espírito de sistema’, segundo a expressão feliz de Kardec; e como Religião em Espírito e Verdade, de acordo com o anúncio do Cristo à Mulher Samaritana.

De nossa parte, não obstante o respeito que votamos ao médium e sua obra, altamente inspirada, não poderíamos dar-lhe outra resposta, além da que apresentamos nestas linhas. Se Ubaldi tivesse lido ‘O Livro dos Espíritos’ certamente jamais faria a proposta que fez. Mesmo porque a sua obra, como a de Flamarion, a de Delanne, a de Denis, a de Bozzano e tantas outras, longe de completar o Espiritismo, apenas procuram desenvolver alguns dos grandes temas que o Espiritismo levantou e sustenta no mundo moderno.”[2]

Essa missiva de Herculano Pires tornou-se famosa, prestando-se como poderoso veículo de defesa da grandeza da Doutrina Espírita, em detrimento da oferta de Ubaldi. A comissão redatora dos anais do VI Congresso Espírita Pan-americano respondeu às críticas e pretensões de Pietro Ubaldi transcrevendo, integralmente, os cinco itens acima enumerados por Herculano Pires. Acreditamos que todos os dirigentes espíritas, das diversas nações e entidades kardecistas ali representadas, tenham sido unânimes em aceitar as críticas ao oferecimento de Ubaldi, inflamados que se achavam em defesa dos postulados kardequianos, os quais não poderiam ser abalados, sobretudo em ocasião tão solene, como um Congresso reunindo os principais representantes espíritas da América Latina.

Infelizmente, esse lamentável mal-entendido demarcou a ruptura entre Ubaldi e os espíritas. Ubaldi, que não estava presente e não pôde argumentar em sua defesa, coisa também que não faria, dado seu caráter eminentemente evangélico e avesso a polêmicas, foi muito mal compreendido, resultando no infeliz e posterior rechaço à sua portentosa e visionária obra. Desde então, essa missiva exarada por Herculano Pires tem sido utilizada pelos espíritas como imbatível argumento para desestimular os estudiosos a se aproximarem de Ubaldi. O Profeta da Nova Era não somente passou a ser rechaçado com veemência nos grupos espíritas, como se tornou, logo depois, um ilustre desconhecido, com graves prejuízos para nossa ascese espiritual e a salutar e esperada evolução do Espiritismo. E assim, em nossa nação sobretudo, seus escritos eminentemente cristãos e sem dúvida a mais importante revelação espiritual dirigida ao homem do século XXI, passaram a ser rejeitados por aqueles que melhor detêm condições de compreendê-los: os espíritas, introduzidos nos estudos do pentateuco Kardequiano e amadurecidos pelas imprescindíveis obras de Chico Xavier.

Entrementes, a conclusão a que chegamos, depois de muitos anos de estudos tanto da Doutrina dos Espíritos quanto da obra de Ubaldi, é que se tratou de infeliz e precipitada conclusão, partida do desconhecimento do real significado do trabalho do Mensageiro da Úmbria e do entusiasmo partidário e fideísta que movia os congressistas. Muitos que assinaram aquela carta mal conheciam o seu livro fundamental, A Grande Síntese, e não detinham elementos seguros para emitir qualquer opinião abalizada sobre o restante de sua obra e seus mais sinceros propósitos.

Humberto Mariotti, então famoso presidente da CEA (Confederação Espírita Argentina) e ocupando também, na ocasião, a presidência do VI Congresso Pan-Americano, aceitou prontamente a crítica de Herculano Pires, apoiando o manifesto de rejeição a Ubaldi. Logo depois, entrementes, ao entrar em contato com a obra do Visionário da Úmbria, revelou ter sido esse o maior erro de sua vida. Ubaldi relata, após receber a visita do ilustre argentino, em 1965, que “(...) o Sr. Mariotti voltou muito satisfeito, concordando que houve um mal-entendido contra a minha oferta, porque jamais tive a intenção de formar grupo ou escola doutrinária contra o Espiritismo ou qualquer outra religião (...)”[3]

Analisemos cuidadosamente a missiva de Herculano Pires, a fim de convencer-nos de que se tratou de fato de um mal-entendido. Primeiramente é bom sabermos que a carta de Ubaldi não partiu de sua espontânea vontade. É bastante provável que o Apóstolo de Gúbio[4], possuidor de um caráter reservado e averso à imposição de ideias, não tomasse essa iniciativa por si mesmo. Se o fez, foi estimulado por um grande amigo seu, o diplomata português Dr. Manuel Emygdio da Silva, então cônsul de Portugal, residente em Montevidéu. É que nos relata José Amaral[5], um dos biógrafos de Ubaldi, e que com ele conviveu por muitos anos. Manuel Emygdio, grande entusiasta da obra de Ubaldi, desejou divulgá-la entre os espíritas, na certeza de que ela muito poderia enriquecer a Codificação Kardecista, e viu no VI Congresso Pan-Americano uma ótima oportunidade para seu intento. O melhor meio para isso, segundo deduzia, seria solicitar ao próprio Ubaldi oferecê-la aos espíritas. E assim nasceu a carta que o Missionário italiano dirigiu aos congressistas, reunidos em Buenos Aires, em 1963. Armava-se desse modo o lastimável acontecimento, fruto das melhores e mais nobres intenções tanto de Manuel Emygdio quanto do Apóstolo da Úmbria.

Infelizmente, os congressistas receberam a carta com desgosto e sentiram-se ofendidos com a dadivosa oferta de Ubaldi. Em resposta, afirmou Herculano Pires que “faltou a Ubaldi a percepção necessária para captar o processo espírita em suas verdadeiras dimensões”, acusando-o de “absoluta falta de acuidade e de compreensão da realidade espírita no mundo de hoje, onde o Espiritismo vem cumprindo serenamente a sua finalidade”.

Para quem leu e estudou as 24 obras de Ubaldi, isso não pode ser verdadeiro. Ubaldi conhecia sim, e profundamente, a obra espírita e a defendeu em diversas ocasiões. Vejamos, por exemplo, o que ele declarou em sua visita à Federação Espírita do Estado de São Paulo, em 1951: “(...) Eu tinha, aproximadamente, 26 anos e vivia em dúvida completa, pois, já golpeado profunda­mente pela dor, não conseguia atinar com as suas causas. Eu a atribuía aos erros cometidos por mim, ou por outros, mas isso não contribuía para eliminá-la. Investigava a filosofia, os vários siste­mas filosóficos, porém, da mesma forma, não conseguia alívio algum. Estudava o espírito das religiões e, todavia, também isso não proporcionava consolação. Então, por acaso — digo acaso, mas por certo era obra da Providência — caiu em minhas mãos O Livro dos Espíritos de Allan Kardec. Eu era jovem, desorientado, não tinha, ainda, pas­sado pela experiência dos grandes problemas da vida. Li com gran­de interesse e vos confesso que, em certo ponto, exclamei: Achei! ... Eureca! poderia ter eu repetido, encontrei, encontrei finalmente a solução que eu procurava e que me esclareceu! Ela foi a primeira semente que deu origem ao meu adian­tamento espiritual e daquele dia em diante foi-se tecendo a trama luminosa do esclarecimento de tal forma que, ampliando-se, ele pe­netrou a ciência, a filosofia, a religião, os problemas sociais e os problemas de todo o gênero. Devo, entretanto, confessar-vos precisamente aqui, nesta noite e neste local, que a Allan Kardec devo a primeira orientação e a solução positiva do problema mais complexo que, mais de per­to, me interessava, considerando minha condição de ser humano. Com grande prazer recebi esta primeira orientação. (...) Esse primeiro jato de luz me veio há quarenta anos pre­cisamente e hoje essa luz se completa no que eu ofereço, como eu disse antes, não criado por mim, mas recebido em consequência do esforço desenvolvido para ampliar o campo de aplicação daquela grande ideia, alcançando o seu objetivo final concretizado nos setores social, religioso, filosófico etc. E é interessante observar que, em consequência disso, eu, sem o saber, era espírita há quarenta anos. (...) Encontrei em toda a parte uma grande fé, uma grande assistência social. Bela realização! Isso me entusiasma! Encontrei nos lugares de cura não só a ciência, mas sobretudo, a fé. Agora, curar os do­entes não só com os processos materiais, como se faz na Europa, mas aquecendo a alma deles com o Evangelho, explicando-lhes a causa das suas dores e ensinando-lhes o verdadeiro caminho para superá-las, partindo, em primeiro lugar da alma e não consideran­do, como o faz a ciência materialista moderna, o nosso corpo como um agregado de células — ou como o corpo de qualquer animal — isto é grandioso! Admirei esse fato! E falarei na Itália e na Euro­pa contra o interesse materialista que lá se imprime a todas ou a quase todas as instituições de cura dos doentes de todas as espécies.[6] 

Em outubro de 1955, em uma entrevista concedia ao Jornal Pernambuco Espírita, Ubaldi responde as seguintes perguntas: “O Sr. aceita o Espiritismo como doutrina cristã? R. Aceito o Espiritismo como doutrina eminentemente cristã e como tal, será aceito por todos, logo que se espalhe pelo mundo. Será a religião do terceiro milênio. Como encara a Codificação Kardequiana? R. É um trabalho que veio revolucionar o pensamento humano. Ela deu um sentimento completamente novo ao estudo da metafísica. Imprimiu um novo sentido no campo da bondade, da paciência e da caridade. Estabeleceu para o mundo um conteúdo moral muito elevado da justiça de Deus e seus atributos. Como sistema filosófico espiritualista, tem os principais elementos para constituir uma verdadeira filosofia.[7]

Herculano Pires afirma também que “Ubaldi recusou-se sempre a integrar-se no movimento espírita, filiando-se na península à corrente da Ultrafânia, do prof. Trespioli, que pretende haver superado a concepção espírita”. Afirmativa que igualmente não é factível. Ubaldi, embora tenha sido criado sob os auspícios do catolicismo italiano, e embalado pelos encantos do franciscanismo que tanto amou, admitiu a doutrina espírita como o mais evoluído pensamento religioso, dentre todos que até então alimentaram a caminhada humana. Certamente, por isso ele veio para o Brasil, onde a Religião dos Espíritos encontrou o seu mais fértil campo de desenvolvimento. E não há relatos de que ele tenha se filiado à Ultrafânia, do prof. Trespioli.

Até a publicação de Deus e Universo, o 10º livro de Ubaldi e o último escrito na Itália, obra divisora entre a revelação de Ubaldi e o Espiritismo, os espíritas aceitavam muito bem o trabalho do Apóstolo de Gúbio, o qual entendiam não representar ameaça alguma aos fundamentos da Codificação kardequiana. Tanto que foram os espíritas que o convidaram a proferir uma série de palestras em nossa nação em 1951 e o convenceram a transferir-se definitivamente para o nosso país, o que se deu a partir do ano posterior, e aqui ele permaneceu até o seu desenlace em 1972. No entanto, depois que os espíritas conheceram esse estupendo livro, rompe-se o encanto dos seguidores de Kardec com o Profeta do Espírito e suas revelações. Nessa magistral obra, seguramente o mais importante tratado teológico escrito no século XX, Ubaldi discorre sobre o processo de gênese e Queda do Espírito, imputando a formação da matéria, do espaço e do tempo a um processo de separação voluntária do Espírito do primal seio divino, dando origem ao nosso universo. Tal fundamental conceito não cabia nos alicerces estabelecidos pela interpretação kardecista, advindo daí a rejeição dos espíritas de todo o restante trabalho de Ubaldi, a despeito do apoio que Chico Xavier inicialmente lhe proporcionara[8]. Ou seja, não foi Ubaldi que se desligou do Espiritismo brasileiro, mas os espíritas é que o rechaçaram e negaram a sua colaboração.

Reconhecemos, contudo, que o rechaço de Ubaldi pelos espíritas foi providencial, pois o Profeta de Gúbio não poderia ter-se filiado estritamente ao Espiritismo. Sua obra teria se fechado no partidarismo religioso, deixando o caráter eminentemente universalista de que se revestiu. Compreendemos que assim haveria de ser, pois a verdade não deve ser partidária, não se limitando a nenhuma facção. Ubaldi, como um espírito superior, amava todas as religiões da Terra e se perfilhou, de fato, à universalidade e à imparcialidade, combatendo a nossa tendência inata de nos estabelecermos em grupos rivais e antagônicos, prontos a se digladiarem na arena do intelecto e da fé. Por isso, tendo por lema esse essencial propósito, ele não poderia, jamais, ter defendido a criação de um “ubaldismo”, como muitos espíritas passaram a condená-lo, vendo-o como uma ameaça ao Espiritismo. Vejamos uma de suas declarações a esse respeito: “Tenho estado entre católicos, espiritistas, protestantes; maometanos e budistas, entre seguidores de muitas religiões e filosofias e também entre ateus. E vi que essas distinções são mais de forma que de substância. Vi que na realidade só existem dois tipos de homens, qualquer que seja a religião a que pertençam; existem como que duas religiões fundamentais, — a do amor e a do orgulho. À primeira pertencem os bons, os humildes que perdoam, os que se aproximam do semelhante para compreender e para auxi­liar; esses estão perto do bem e de Deus. À segunda religião per­tencem os orgulhosos, que discutem para dominar, que desejam des­truir para vencer, que se avizinham do semelhante com espírito de contenda, para fazer erguer-se o próprio eu; esses estão distantes do bem e de Deus. Trata-se de dois métodos opostos, que sob qualquer for­ma, religião ou filosofia, revelam sempre o homem e sua verdadei­ra religião, a do bem ou a do mal. Tenho ensinado sempre, com absoluta imparcialidade, essa religião mais substancial, que ensina sobretudo a amar. Quem agride, quem polemiza, se distancia do amor, que compreende sem dis­cutir e resolve todas as questões perdoando. Sem essa base, que é o fundamento do Evangelho e da natureza de Deus, qualquer reli­gião se torna uma mentira, pois a verdade foi controvertida. Amar é a lei de Deus. Quem não ama, embora seja sábio e poderoso, não vive conforme a lei de Deus[9].

Podemos afirmar, portanto, que Ubaldi não combateu o Espiritismo, sequer qualquer outra religião da Terra. Ele apenas veio ajudar-nos a compreender que a verdade não pertence a religião alguma, que todas, até mesmo o Espiritismo, contêm parte da verdade absoluta e devem se complementar. De forma escorreita, em sua magistral síntese monista, ele ensinou-nos a amar tanto as verdades espíritas quanto as católicas e reformistas, ensinando-nos, de forma surpreendente, a uni-las em uma grande verdade, superior a todas elas. Essencialmente aderidas ao Evangelho, suas lições são imprescindíveis para nos fazer ver que a revelação espírita não se antepõe ao Cristianismo primitivo, como pode julgar um observador parcial, mas, muito pelo contrário, as duas teologias se completam. Não conhecemos, portanto, pensamento mais adequado para unir com perfeição a Doutrina dos Espíritos aos alicerces teológicos cristãos estabelecidos no Novo Testamento. Conceitos como Reino de Deus, Ressurreição e Salvação, Céu e Inferno são, com Ubaldi, devidamente fundidos aos preceitos espíritas de evolução, reencarnação e vida após a morte. Somente depois de um aprofundado estudo sem preconceitos da obra de Ubaldi é que se pode chegar a essa constatação. Por tudo isso, pedimos aos espíritas sinceros que se eximam de negar e demolir o trabalho de Ubaldi de forma precipitada, pois correm o risco de estar combatendo, sem o perceberem, um enviado do Cristo e o próprio Evangelho.

Refere ainda Herculano Pires que o trabalho de recepção de correntes de pensamentos de Ubaldi seria “uma pretensiosa concepção de mediunidade cósmica, fugindo à naturalidade e simplicidade das comunicações espirituais entre espíritos desencarnados e médiuns”. E que, “as pretensões de Ubaldi o transformaram, de simples médium em autor messiânico, agora arvorado em reformador do Espiritismo”. Ubaldi, em sua simplicidade evangélica, jamais demonstrou tal pretensão de orgulho e pressentimos o quanto essas afirmações devem ter-lhe ferido a alma sensível. Emmanuel, através de Chico Xavier, afirmou que “Pietro Ubaldi interpreta o pensamento das altas esferas espirituais, de onde ele provém"[10], portanto, o Apóstolo da Nova Era devia sentir seu real e permanente contato com planos elevados, o que o autorizava a apresentar-se como um missionário entre nós. Todavia, Ubaldi não se dignou elevar a voz em sua defesa, deixando que os fatos futuros e sua obra viessem a falar por si sós.

Hoje estamos plenamente convencidos de que Ubaldi é um real enviado do Cristo para ajudar-nos na recomposição das verdades necessárias à nossa caminhada evolutiva. Renegando-o com veemência e combatendo sua obra, sem dar-nos a oportunidade de examiná-la e constatar sua justa aferição ao Evangelho, incorremos no grave risco de estar “apedrejando” novamente um profeta entre nós. Basta lançar os olhos para a retaguarda da História para constatarmos que, em todos os tempos, rechaçamos em um primeiro momento todos os mensageiros que comparecem com verdades aparentemente diferentes das nossas convicções, parecendo ameaçar as certezas que tomamos por imutáveis. Somente mais tarde é que chegamos a alcançar e compreender suas revelações, colocando-os então nos pedestais de nossas venerações.

Ubaldi teve mesmo a pretensão de completar a Doutrina Espírita, como entendem os espíritas? O Espiritismo constitui de fato um “sistema conceptual espírita completo cuja síntese está em O Livro dos Espíritos”, não necessitando de complementos, como exara Herculano Pires? Ora, sendo a codificação kardequiana “uma doutrina evolucionista”, como muito bem a caracterizou o seu fundador e todos corroboram, ela não pode estar completa. Achando-se aberta, ela faz-se de fato um corpo filosófico, religioso e científico que necessita avançar sempre através de novos conhecimentos e renovação de suas verdades, a fim de acompanhar nosso progresso e nosso permanente amadurecimento evolutivo. Torna-se claro que não possuímos verdades absolutas e inamovíveis e deveremos estar preparados, em toda ocasião, para rever nossas mais bem estabelecidas convicções. Nossa natural tendência sempre foi fixarmos verdades como absolutas e lutarmos contra qualquer modificação de nossos pilares de certezas, em todos os campos de nossa atuação. Não é diferente com o Espiritismo, pois tal é a natureza de todos que o seguimos. E o Espiritismo não se eximiu de subordinar-se à nossa parcial capacidade de interpretar as revelações que o Mundo Espiritual periodicamente nos envia, prendendo-se à restrita visão de mundo de uma era.

É inegável o quanto progrediu o pensamento humano desde o advento da Codificação espírita. Na época em que Kardec inquiria as mesas girantes, a mentalidade do século XIX sequer sonhava com a Física Relativista de Einstein, as estonteantes afirmativas da Mecânica Quântica ou mesmo as descobertas da Nova Cosmologia do século XXI. O homem ainda admitia viver em um universo ilimitado, subordinado ao tempo absoluto das leis newtonianas e embalsamado pelas concepções dualistas e dicotômicas do cartesianismo. Inevitavelmente, os conceitos semeados nas obras básicas permaneceram atrelados às concepções próprias da cosmovisão do século XIX e precisam ser urgentemente revistas.

Embora Kardec tenha estabelecido as bases de um pensamento eminentemente progressivo, nós, seus seguidores, no entanto, negamo-nos a fazer essa revisão. Transformamos os conceitos básicos de nossa doutrina em sólidos cânones, evidenciando-se que, em absoluto, não estamos “livres da estagnação dogmática”, como afirma Herculano Pires. Somos velhos e renitentes pensadores, habituados a fixar como colunas inamovíveis todas as verdades veiculadas pelas religiões a que nos afeiçoamos. Basta um pouco de sinceridade para admitir que nós, os espíritas (e não o Espiritismo em si), permanecemos hoje perfeitamente presos às revelações estabelecidas e interpretadas pelas limitadas mentes mediúnicas do século XIX.

Este pequeno texto não traz o escopo de ressaltar todos os pontos em que o Espiritismo requer evoluir. No entanto, basta olhar de fora a nossa Doutrina para constatar os tópicos nos quais ela precisa progredir e modificar conceitos fundamentais. Podemos citar como rápidos exemplos: a veemente refutação do importante fenômeno da Queda do Espírito, ainda que tal capital revelação integre a essência do Evangelho de Jesus, do qual não pode separar-se sem ferir-lhe os fundamentos[11]. A teimosa negação da inexistência de retrocessos na evolução do espírito, sendo que os fatos nos falam exatamente o contrário. A renitente fixação na interpretação de que ressurreição é exatamente reencarnação, sendo que o Evangelho e as próprias obras espíritas, sobretudo da autoria de Emmanuel, não corrobora essa definição. O inapelável conceito de que Reino de Deus é mero estado de alma, contrariando a ênfase que Jesus deu ao tema, tornando-o o objetivo maior de nossas vidas e do próprio universo em que vivemos. A criação do espírito em condição de simplicidade e ignorância não pode ser questionada nos meios espíritas sem que se levante não só obstinadas objeções, mas cega negação de se admitir qualquer outra possibilidade para a gênese do ser. A adoção do dualismo cartesiano como retrato da realidade, em uma época em que a própria ciência evolui a passos largos para afirmar o monismo universal. A visão de um Deus que cria permanentemente no Relativo, a partir do caos, enquanto assistimos a Cosmologia moderna remeter a gênese do cosmo às dimensões do Absoluto, fora do tempo e do espaço. E as arcaicas teorias embasada nos fluidos cartesianos que se mantêm mesmo ante o advento do eletromagnetismo de James Maxwell e das teorias de campo de Einstein. Enfim, vemos que trouxemos para os templos espíritas nosso velho hábito de compor cânones religiosos, tornando imutável uma doutrina estabelecida na superada cosmovisão do século XIX e suas inquestionáveis limitações epistemológicas. Basta folhearmos a A Gênese, de Kardec, antepondo-a, em uma análise despojada de paixão, ao panorama que hoje a Nova Cosmologia nos acena ao entendimento, para percebermos com clareza que a maioria de seus preceitos e deduções estão hoje ultrapassados.

Desse modo, os defensores da chamada “pureza doutrinária” prestam um desserviço ao Espiritismo, pois, impondo-lhe franco misoneísmo, terminam por derruir um de seus mais belos alicerces: a capacidade de se modificar, acompanhando a evolução do pensamento humano. O resultado será o seu isolamento nas arcaicas concepções do século XIX, distanciando-se da efervescente ciência do século XXI.

E pretender caminhar sempre não pode ser um erro, pois é o próprio Espiritismo, doutrina progressista por excelência, que nos concita a seguir adiante, sem jamais nos deter, através das sábias palavras do Codificador, exaradas em A Gênese: “Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificará nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará[12].

Julgamos, portanto, um erro acatar a afirmação de Herculano Pires de que “o sistema conceptual espírita é completo”. Ora, nenhuma doutrina existente na Terra é capaz de gabar-se de possuir um sistema conceptual completo, pois estamos em evolução e não atingimos o ápice do conhecimento. Pelo contrário, estamos muito longe disso e, se aprofundarmos nossos questionamentos, compreenderemos que apenas nos introduzimos no ilimitado conhecimento de Deus e de Sua Criação. O próprio O Livro dos Espíritos não é uma obra acabada, como muito bem a caracterizou os Espíritos que a ditaram – na questão 18 desse livro, por exemplo, eles sustentam: “O véu se levanta a seus olhos à medida que o homem se depura; mas, para compreender certas coisas, são-lhe precisas faculdades que ele ainda não possui”. Na questão 182, completam: “Nós, os Espíritos, só podemos responder de acordo com o grau de adiantamento em que vos achais[13]. Além disso, compreendemos que os próprios Espíritos que acompanham de perto nossa caminhada estão também em evolução e não atingiram o ápice do saber absoluto. Por isso, afirmam-nos, com sinceridade, em A Gênese de Kardec: “Há questões que nós mesmos, espíritos amantes da ciência, não podemos aprofundar e sobre as quais não poderemos emitir senão opiniões pessoais, mais ou menos hipotéticas”.[14]

Por tudo isso, está certo o Apóstolo de Kardec, que se contradiz ao admitir que “a filosofia espírita é limitada, não oferece uma visão completa do Todo e não abrange todos os momentos da lei de Deus”. E é certo que “isso não está ao alcance de nenhuma elaboração mental, no plano relativo da vida terrena”, como acertadamente conclui Herculano Pires. Ubaldi também não teve a pretensão de abranger com sua revelação “todos os momentos da Lei de Deus”, mas caracteriza-se perfeitamente como um enviado dos Planos Superiores para nos fazer progredir nesse intento que atingiremos somente nos altiplanos da evolução.

O grande filósofo italiano, espírito de alta estirpe e permanentemente conectado a Esferas Superiores, percebeu claramente que nossa Doutrina não é um corpo completo de ensinamentos e necessitava continuar sua vitoriosa carreira de servir-se como um farol para a caminhada humana. A visão monista de Deus e da Criação que se desdobrou ante seu elevado espírito evidenciou-lhe com clareza que as religiões da Terra, inclusive o Espiritismo, estão estacionadas em compreensões parciais e monoteístas, o que lhes impede de avançar um passo mais rumo a uma compreensão mais abrangente da realidade. Assentado nessa evoluída compreensão, Ubaldi pôde vislumbrar os pontos em que o entendimento espírita, embora um dos mais evoluídos que nossa humanidade já alcançou, ainda precisa progredir. O espírita, no entanto, encerado em cânones religiosos, julga, de modo geral, que se trata de grave despropósito afirmar que uma religião veiculada por Espíritos superiores possa conter verdades incompletas ou equívocos interpretativos, por isso nega veemente que nossa Doutrina necessite de complementos. Infelizmente, trata-se de postura equivocada que somente aquele que analisou cuidadosa e desapaixonadamente a revelação do Apóstolo da Úmbria pode constatar. Portanto, a oferta de Ubaldi não foi uma pretensão ou uma orgulhosa ofensiva de alguém que almeja corrigir verdades alheias, mas a doação amorosa de um pensador que foi capaz de divisar muito além de nossa parca percepção.

Entendemos que é perfeitamente compreensível que o espírita não identifique por si só as barreiras que cerceiam a Codificação Kardequiana. Precisamos de alguém que olhe de fora nossas verdades para indicar-lhes os limites e os pontos falhos. Comumente, no entanto, em decorrência de nosso natural misoneísmo, não recebemos de bom grado aqueles que nos apontam as falhas de compreensão, sobretudo no terreno religioso, e vemos até mesmo como uma grave ofensa quem se arvore a enumerá-las. Por isso, é perdoável o fato de a referida carta de Ubaldi ter provocado um mal-estar entre todos os congressistas latino-americanos. Não é fácil aceitar que “a filosofia espírita é limitada, não oferece uma visão completa do Todo” e “não abrange todos os momentos da lei de Deus”, como diz Ubaldi. Somente quem pôde penetrar nas revelações trazidas pelo Profeta de Gúbio habilita-se a vislumbrar a incompletude da Doutrina Espírita. E tal afirmação não é um desacato ou ultraje. Muito pelo contrário, é fruto da nobre intenção de quem somente quer ajudar.

Basta desvestirmo-nos de nossos brios para constatar com facilidade os pontos em que nossa Doutrina encontra-se incompleta. Como exemplo, consideremos as revelações sobre as primeiras origens de tudo que existe, contidas no pentateuco kardequiano. Hoje, com os conhecimentos que temos, torna-se evidente que esses primeiros ensaios da Doutrina Espírita não poderiam esclarecer-nos em definitivo os mistérios da gênese original do espírito. Os naturais óbices do homem do século XIX impediam que importantes conceitos sobre esse tema fossem-nos então revelados. Encontramos prova disso na obra fundamental, O Livro dos Espíritos: na questão 49, por exemplo, as próprias entidades orientadoras de Kardec informam-nos que “O princípio das coisas está nos segredos de Deus”. Na questão 78, em resposta à pergunta se os Espíritos tiveram princípio, a entidade reitera: “(...) quando e como cada um de nós foi feito, repito-te, ninguém o sabe: aí é que está o mistério”. Na questão 81, novamente, respondendo a Kardec sobre a formação dos espíritos, eles acentuam: “Deus os cria, como a todas as outras criaturas, pela Sua vontade. Mas, repito ainda uma vez, a origem deles é mistério.”

Pelo que nos consta, caberia a Ubaldi fazer-nos evoluir um pouco quanto ao conhecimento da gênese primeira do Espírito. Nas referidas obras Deus e Universo e O Sistema, o Apóstolo da Úmbria pôde vislumbrar com suas apuradas antenas psíquicas como se deu a formação dos Filhos de Deus, no seio imaculado do Criador, fora do tempo e do espaço. Em decorrência disso é que se achava devidamente autorizado a escrever aos congressistas reunidos em Buenos Aires em 1963: “O Espiritismo não possui uma teologia que nos esclareça a respeito das primeiras origens do universo e do plano geral da criação, nem os Espíritos revelaram coisa importante nesse assunto. E esses não são problemas longínquos, porque, sem conhecer a primeira fonte de tudo, não se pode conhecer a razão pela qual o nosso mundo está feito dessa maneira e não de outra; e temos de nos conduzir conforme determinados princípios éticos. A atual filosofia espírita é limitada e não nos dá uma visão completa do todo, não explica, pelo menos numa visão de conjunto, todos os aspectos e não abrange todos os momentos da Lei de Deus. Quem entrou nesse terreno viu que há horizontes sem fim, que as religiões ainda não suspeitaram (...)”[15]

É ainda pelo mesmo motivo que Ubaldi pôde afirmar, encerrando suas palavras na entrevista do Jornal Pernambuco Espírita: “[O Espiritismo] necessita de um estudo mais desenvolvido. A codificação kardequiana tem todos os princípios científicos em estado de embrião. A ciência oficial de hoje não os encara como coisa séria. É preciso, pois, que alguém de responsabilidade, apareça para incentivar o estudo das doutrinas dos espíritos nos meios científicos, norteando-lhes o verdadeiro estudo, fazendo com que a ciência oficial siga-lhes as pegadas. E no campo experimental, dentro das instituições espíritas, dar uma nova feição ao estudo da mediunidade hoje tão malbaratada nesses centros de estudos”.[16]

Essa postura não invalida o reconhecimento, como nos afirma Herculano Pires, de que houve de fato “imenso desenvolvimento em apenas cem anos de existência” do pensamento espírita. No entanto, é forçoso reconhecer que esse progresso atingiu apenas as áreas de atuação social do Espiritismo e de detalhamento da vida após-túmulo, através da brilhante mediunidade de Chico Xavier. Os pilares fundamentais do pentateuco kardequiano não se moveram e permanecem absolutamente intocáveis, sendo hoje uma verdadeira heresia pretender modificá-los. Tal postura seguramente exerce sobre qualquer médium um forte obstáculo à recepção de mensagens que venham a contrariá-los.

Evidencia-se ainda que não podemos concordar com nosso ilustre escritor e respeitado pensador espírita ao assegurar a “impossibilidade de estabelecer-se na Terra uma teologia científica, nem dentro nem fora do Espiritismo”. A verdade é uma só e tanto a ciência quanto as religiões que a buscam afanosamente encontrar-se-ão no avanço da caminhada humana. Nosso progresso inevitavelmente conduzir-nos-á à completa fusão do pensamento científico com o religioso, permitindo-nos realizar com perfeição a tão sonhada síntese do conhecimento humano. Negará essa possibilidade somente quem ainda não observou o amadurecimento da ciência moderna e sua inevitável intromissão nos mais recônditos segredos do Universo. De modo que o estabelecimento de uma Teologia perfeitamente aderida à Ciência torna-se a cada dia mais viável, levando-nos facilmente a vislumbrar no horizonte próximo o dia em que a Religião se tornará Ciência e a Ciência se converterá em Religião.

Sabemos que uma árvore somente se conhece pelo seu fruto, portanto, temos que degustá-lo, nós mesmos, a fim de formularmos uma opinião segura e abalizada sobre o seu valor, antes de qualquer crítica. Sugerimos assim que todo aquele se sinta atraído pela obra de Ubaldi que se atire ao exame de seu trabalho, sem considerar as opiniões parciais emitidas por importantes espíritas de nossa nação, ainda que relevantes. Que comece por Grandes Mensagens, detendo-se apenas no seu último livro, Cristo. Somente depois dessa análise cuidadosa é que ele poderá formular a sua particular opinião sobre Ubaldi. E unicamente depois disso é que aceitaremos como valioso o seu julgamento, ainda que desfavorável.

Portanto, não podemos considerar válido apoiar-se na carta do Apóstolo de Kardec, exarada no Congresso Espírita de 1963, para julgar e negar o trabalho de Ubaldi. Trata-se de atitude precipitada ante a qual o estudioso sincero poderá, assim como Humberto Mariotti, arrepender-se mais tarde, deixando passar a mais valiosa contribuição à nossa mais rápida emersão nos planos superiores da evolução. E podemos adiantar que ainda não conhecemos alguém que se aprofundou na obra de Ubaldi para posteriormente negar o seu imenso valor como genuína ferramenta, indispensável à nossa jornada evolutiva.

Se faltar-nos referenciais para validar as revelações de Ubaldi, sugerimos fazer do Evangelho de Jesus nosso mais fiel guia da verdade. Após cuidadosa análise de sua obra será muito difícil a qualquer leitor e estudioso negar que as lições do Missionário da Úmbria estão, mais do que qualquer outro, essencialmente aderidas aos ensinos do Cristo. Afirmação que aquele que desconhece Ubaldi rejeita e somente poderá compreender e aceitar depois de analisar todo o seu trabalho.

Nossa voz, nesta despretensiosa missiva, nada significa, é nada mais que um pequeno sussurro, no entanto, ela se apõe a contundentes vozes como a de Chico Xavier, de Carlos Torres Pastorino, a do professor Henrique Rodrigues, de Clovis Tavares, Rubens Romanelli, a do próprio Humberto Mariotti, que terminou por defender Ubaldi, e de tantos outros nomes que a cada dia vêm se juntando a um grande movimento que visa restabelecer as lições de Ubaldi, sobretudo no meio espírita, a fim de impulsionar a nossa tão amada doutrina rumo à sua real destinação: a construção de um novo homem e um novo mundo nas sombrias plagas terrenas, embasado no Evangelho do Cristo.

Respeitamos, e muito, as abalizadas conclusões de Herculano Pires, em vários campos do conhecimento espírita. Reconhecemos o inestimável valor de suas obras. Todavia, concluímos que o eminente pensador equivocou-se na avaliação do trabalho de Ubaldi. Nesse caso, ficamos com Ubaldi e concluímos que o episódio do Congresso Pan-americano de 1963 deve ser esquecido como o mais infeliz marco da história do Espiritismo brasileiro e latino.

Encerramos com a declaração de Carlos Torres Pastorino, outro conceituado pensador espírita, profundo conhecedor do Evangelho e autor de importantes obras: “Para quem lê Kardec superficialmente, detendo-se nas palavras impressas, a teoria de Pietro Ubaldi pode parecer ‘herética’, mas aos que leem o mestre penetrando as entrelinhas das respostas dos Espíritos, tão sábias e profundas, nada lhes parece de contraditório[17]. O autor de A Sabedoria do Evangelho, que também traduziu importantes obras de Ubaldi, concita-nos assim a completar os estudos espíritas com os livros do Apóstolo de Gúbio, para imenso proveito de nosso progresso espiritual e o inegável avanço da Codificação Kardequiana.

Que as luzes do Alto não nos faltem a fim de não nos perdermos nas ainda sombrias veredas da vida por onde, indecisos, ainda perambulamos.

Nova Lima, verão de 2014

Gilson Freire

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) KARDEC, Allan. A Gênese. 17a ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1975.

2) KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 79ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1997.

3) RIZZINI, Jorge. J. Herculano Pires, o Apóstolo de Kardec. Editora PAIDÉIA, São Paulo/SP, 2001.

4) UBALDI, Pietro. Grandes Mensagens. 6ª Ed. do INSTITUTO PIETRO UBALDI, Campos dos Goytacazes, RJ, 2012.

5) UBALDI, Pietro. O Sistema. Ed. do INSTITUTO PIETRO UBALDI, Campos dos Goytacazes, RJ, 2012.

SITES CONSULTADOS:

1)  http://www.herculanopires.org.br/apostolo-abertura/341-pietroubaldi

2)  http://www.ofrancopaladino.pro.br/mat341.htm.

3) http://www.ubaldibh.org/index.php/publicacoes-e-mensagens/entrevista-com-pietro-ubaldi.

4) http://www.ubaldi.org/



[1] RIZZINI, Jorge. J. Herculano Pires, o Apóstolo de Kardec. Editora PAIDÉIA, São Paulo/SP, 2001 - pág. 247 a 251.

[3] UBALDI, Pietro. Grandes Mensagens. Ed. do INSTITUTO PIETRO UBALDI, Campos dos Goytacazes, RJ – Segunda Parte, cap. 17, pág. 64.

[4] Ubaldi nasceu na cidade de Gúbio, na região da Úmbria, no centro da Itália, e por isso Chico Xavier assim o denominou em uma de suas cartas dirigidas a Clóvis Tavares.

[5] Informação que consta apenas nas quatro primeiras edições da obra Grandes Mensagens, no cap. XII, terceira parte, pág. 228, da 4ª edição.

[6] UBALDI, Pietro. Grandes Mensagens. Ed. do INSTITUTO PIETRO UBALDI, Campos dos Goytacazes, RJ – Terceira Parte, cap. 3, pág. 197.

[8] Para quem ainda não se deu conta de que o conceito de Queda do Espírito está inserido na Doutrina Espírita, recomendamos a leitura do artigo “Referências da Queda na Codificação Espírita e na Obra de Chico Xavier” disponível em http://www.gilsonfreire.med.br/index.php/ubaldianos/a-queda-na-doutrina-espirita

[9] UBALDI, Pietro. Grandes Mensagens. Ed. do INSTITUTO PIETRO UBALDI, Campos dos Goytacazes, RJ – segunda parte, cap. 6, pag. 212.

[10] UBALDI, Pietro. Grandes Mensagens. Ed. do INSTITUTO PIETRO UBALDI, Campos dos Goytacazes, RJ – Segunda Parte, cap. 4, pág. 61.

[11] Para quem ainda não se deu conta de que o conceito de Queda do Espírito está inserido na Doutrina Espírita, recomendamos a leitura do artigo “Referências da Queda na Codificação Espírita e na Obra de Chico Xavier” disponível em http://www.gilsonfreire.med.br/index.php/ubaldianos/a-queda-na-doutrina-espirita

[12] KARDEC, Allan. A Gênese. 17a ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1975 – cap. I, item 55.

[13] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 79ª ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1997.

[14] KARDEC, Allan. A Gênese. 17a ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1975– cap. 6, tópico 6.

[15] Ubaldi, Pietro. Grandes Mensagens, 4ª ed., cap. XII, terceira parte, pág. 230.

[16] A entrevista completa acha-se publicada na íntegra no site http://www.ubaldibh.org/index.php/publicacoes-e-mensagens/entrevista-com-pietro-ubaldi.

[17] UBALDI, Pietro. O Sistema. Ed. do INSTITUTO PIETRO UBALDI, Campos dos Goytacazes, RJ, 2012 – pág.9.

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